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Imagem: Revista Fapesp – Maurício Rummens / Fotoarena
Por Diego Viana / Reproduzido de Revista Fapesp – edição 322
. No começo da década de 1980, quando Heloisa Reis iniciava sua carreira de jogadora de futebol no Guarani Futebol Clube, em Campinas, um fato recorrente atiçou sua curiosidade. A cada semana, um público majoritariamente masculino saía de casa para acompanhar as partidas, mas, em vez de torcer e incentivar as jogadoras que defendiam as cores de seu time, dedicava seu tempo a lançar impropérios e insultos contra as atletas.
. Além de insultada, ela se sentia intrigada: o que é esse impulso que leva pessoas à arquibancada no domingo, não pela alegria do esporte, mas para agredir? Hoje professora titular de educação física na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a ex-jogadora relata que a pergunta está na base de muitas pesquisas que realizou na carreira acadêmica. “Com as entrevistas que fiz para o doutorado, comecei a entender melhor a violência que marcou a minha vida e impediu tantas meninas de seguirem jogando.”
Ouça entrevista completa de Heloisa Reis, aqui.
“A questão de base é se o futebol deve ser visto como espelho ou como vetor da sociedade”, resume o historiador Bernardo Buarque de Hollanda, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getulio Vargas (CPDOC-FGV). “A diferença é que o espelho apenas reflete, é uma relação mecânica. O futebol também é algo que engendra a sociedade, é produtor de relações sociais e deve ser examinado por esse prisma.”
A experiência de Reis ilustra como o esporte bretão é um campo de pesquisa privilegiado das relações sociais na nação que já foi chamada de “país do futebol” e “pátria de chuteiras”. Praticado por profissionais e amadores em todo o país, em estádios para dezenas de milhares de espectadores ou campos improvisados de terra na chamada “várzea”, capaz de mobilizar multidões em festas coloridas ou confrontos violentos, transmitido ao vivo pela televisão e internet, o futebol está por toda parte.
Apesar de entranhado na cultura brasileira, o futebol só passou a ser estudado com regularidade nas ciências humanas a partir do final da década de 1970, conforme apontam Sérgio Settani Giglio, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades da Unicamp, e o economista Marcelo Weishaupt Proni, da mesma universidade, na introdução do livro O futebol nas ciências humanas no Brasil (2020, Editora Unicamp). Até então, o esporte favorito dos brasileiros era considerado um tema menor, abordado sobretudo em ensaios de jornalistas, como Mário Filho (1908-1966), autor de O negro no futebol brasileiro (Pongetti, 1947), e estrangeiros, como o filósofo alemão Anatol Rosenfeld (1912-1973), autor dos artigos reunidos em Negro, futebol e macumba (Perspectiva, 2006).
Registro do estádio do Corinthians, localizado em Itaquera, em São Paulo, meses antes de sediar o jogo de abertura da Copa do Mundo de 2014 – PauloFridman / Corbis via Getty Images
O estudo pioneiro sobre futebol foi produzido no mesmo período em que Heloisa Reis disputava suas primeiras partidas amadoras em Campinas. E, apesar de o futebol ser considerado então um ambiente quase exclusivamente masculino, sua autoria também é de uma mulher: a antropóloga Simoni Lahud Guedes (1950-2019), que defendeu em 1977 a dissertação “O futebol brasileiro – Instituição zero”, pelo Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Uma publicação póstuma do texto está programada pela editora Ludopédio.
Na esteira de Guedes, emergiu a primeira geração de sociólogos, antropólogos e historiadores que olharam com atenção para o tema no Brasil. Destacam-se o livro História política do futebol brasileiro (Brasiliense, 1981), de Joel Rufino dos Santos (1941-2015), a dissertação “Os gênios da pelota: Um estudo do futebol como profissão”, defendida em 1980 por Ricardo Benzaquen de Araújo (1952-2017) na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e as coletâneas Universo do futebol: Esporte e sociedade brasileira (Pinakotheke, 1982), organizada pelo antropólogo Roberto DaMatta, e Futebol e cultura, organizada pelos historiadores José Carlos Sebe Bom Meihy e José Sebastião Witter.
“Naquele momento, anos 1980, os estudos passaram a enfatizar a especificidade do futebol como fenômeno social. O futebol se mostra uma fonte de identidade regional e nacional, como elemento de criatividade”, afirma o filósofo Felipe Paes Lopes, da Universidade de Sorocaba (Uniso), que desenvolve pesquisa sobre o papel social e político das torcidas uniformizadas. “Na obra por ele organizada, DaMatta busca entender como o futebol permite ao brasileiro vivenciar uma experiência de democracia e justiça social, diferente das outras esferas da sociedade, em que valem as relações clientelistas.”
“Comparando com essas pessoas que, nos anos 1980, quase tinham de pedir desculpas por querer investigar o tema, hoje estamos em um lugar inimaginável. O livro que organizamos revela o amadurecimento das pesquisas no Brasil”, comenta Giglio. “Reunimos cerca de 50 autores que construíram essa trajetória, constituindo grupos de pesquisa e publicando intensamente. E mesmo assim ficou muita gente de fora”, diz. O pesquisador é um dos criadores da organização não governamental Instituto Ludopédio, de divulgação da produção acadêmica em torno do futebol.
Em 2010, no Maracanã, torcedores do Fluminense lançam talco para receber a equipe, em referência ao pó-de-arroz. O cosmético é símbolo do time carioca desde 1914, quando o atleta Carlos Alberto foi ironizado pela torcida adversária por usá-lo para clarear a pele – TimClayton / Corbis via Getty Images
A década de 1990, em particular, vivenciou uma significativa expansão das pesquisas. “Várias abordagens teóricas foram testadas, metodologias de análise científica foram aplicadas, interpretações diferentes ganharam densidade, congressos abriram espaço para novos pesquisadores. Mas a produção acadêmica era ainda incipiente”, escrevem Giglio e Proni na apresentação do livro.
Na primeira década deste século, o financiamento às pesquisas sobre o tema ganhou força, sobretudo após a escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014 e do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016, constituindo o que ficou conhecido como “década do esporte”. A própria Copa do Mundo, que suscitou protestos nas ruas e trouxe uma grande decepção para o torcedor brasileiro, inspirou novas levas de pesquisa.
“A Copa de 2014 talvez tenha provocado uma nova inflexão nos estudos sobre o futebol brasileiro em alguns aspectos, mas em outros não”, afirmam os organizadores da obra. “Mais de 30 anos depois, o futebol é debatido frequentemente nas universidades brasileiras, e nenhum integrante da academia ousaria dizer que esse não é um tema de estudo para ser levado a sério.”
Não foi só no Brasil que o futebol demorou a se consolidar como campo de estudos nas ciências humanas. A maior referência estrangeira citada pelos estudiosos do tema é a chamada Escola de Leicester, que se desenvolveu a partir da década de 1970, cujo nome mais importante é o do sociólogo britânico Eric Dunning (1936-2019), autor de livros sobre o comportamento dos torcedores e a violência nos estádios.
Policiais tentam conter invasão de torcedores no gramado do Pacaembu, durante jogo entre Palmeiras e São Paulo pela Supercopa de Juniores, em agosto de 1995 – RobertoDuque / Folhapress
No início da carreira, Dunning foi supervisionado pelo sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990), que via nos estádios um espaço propício à catarse coletiva, como contraponto ao modo de vida rotineiro e controlado das sociedades desenvolvidas modernas. “Essa catarse explica a violência simbólica entre as torcidas, que se insultam durante os jogos. Lendo Elias, reconheci a sensação de expurgar as frustrações que havia nos homens que me ofendiam quando eu jogava”, explica Reis.
Lopes associa o interesse pelo futebol nas ciências humanas aos conflitos sociais ocorridos na Europa a partir do final da década de 1960. Episódios traumáticos da década de 1980 reforçaram a tendência. Brigas de torcedores, por lá conhecidos como hooligans, suscitaram questões sobre o papel do esporte na sociedade. Em 1989, a tragédia de Hillsborough, em que o público de uma partida ficou preso em um estádio superlotado, causando a morte de 97 pessoas em Sheffield, na Inglaterra, foi um divisor de águas, evidenciando que o futebol deveria ser objeto de políticas públicas efetivas. Para tanto, o esporte precisava ser estudado cuidadosamente.
Uma resposta à tragédia de Hillsborough foi a elaboração do relatório Taylor, no ano seguinte, recomendando, entre outras medidas, que as partidas tivessem apenas espectadores sentados. Na ausência de espaços para torcedores em pé, os estádios encolheram e os ingressos encareceram. O processo coincidiu com o período em que a liga inglesa de futebol visava modernizar-se para ampliar suas receitas, na concorrência com ligas como a espanhola e a alemã. Em 1992, surgiu a Premier League, o campeonato inglês que atualmente é o mais valioso do mundo, movimentando £ 7,6 bilhões (cerca de R$ 45,2 bilhões) por ano, segundo a consultoria Ernst & Young.
Essas reformas contribuíram para mudar o perfil das torcidas presentes aos estádios, em processo conhecido como gentrificação (em que espaços inicialmente ocupados por populações de renda mais baixa passam a servir a grupos de renda mais alta) e “arenização”: são chamados de “arenas” aqueles estádios que oferecem mais conforto, com ingressos de valores elevados. Esse movimento contribuiu para a aceleração de outro processo iniciado nos anos 1980: a expansão do futebol como mercado que movimenta centenas de bilhões de dólares. Foi naquela década que as redes de TV passaram a transmitir regularmente as partidas e as equipes começaram a estampar as marcas de patrocinadores em suas camisas.
Violência registrada uma década antes durante partida entre Juventus e Liverpool em final da Eurocopa no estádio Heysel, em Bruxelas, BélgicaLiverpool Echo / Mirrorpix / Getty Images
“A preocupação com a violência e o impulso de arenização estão completamente vinculados. Só não podemos ter certeza, no caso do Brasil, de qual deles veio primeiro”, afirma Reis, que começou a trabalhar em sua tese doutoral em 1995, ano daquela que ficaria conhecida como a “batalha campal do Pacaembu”, conflito entre torcedores de Palmeiras e São Paulo que resultou em uma morte e mais de 100 feridos. Episódios como esse serviram de incentivo nas universidades para o estudo dos hábitos de torcida, buscando modos de evitar que a violência simbólica dos insultos gritados nas arquibancadas descambasse para agressões físicas.
A professora da Unicamp argumenta que a violência no futebol é um problema com múltiplas dimensões. Para ela, há no Brasil uma identificação equivocada entre os chamados hooligans e as torcidas organizadas. “Mas esses grupos de homens, que buscam briga porque sentem prazer quando se colocam em situação de perigo, estão tanto dentro quanto fora das torcidas”, explica.
Por isso, em sua avaliação, soluções como o uso de câmeras nos estádios são insuficientes, porque os grupos se encontram, por exemplo, nos trajetos dos jogos. Reis considera que cabe ao Estado implementar uma política que envolva o monitoramento dos grupos violentos e policiamento preventivo, não repressivo. “A política pública deve vigiá-los e dificultar sua ação. E, se a vigilância não for suficiente, a polícia deve ser capaz de intervir rapidamente”, resume.
Reis foi uma das pesquisadoras à frente da criação da Comissão Nacional de Prevenção da Violência para a Segurança dos Espetáculos Esportivos, instalada pelo governo federal em 2004 e conhecida como Comissão Paz no Esporte. Em 2006, a comissão, coordenada por Marco Aurélio Klein, professor de marketing esportivo da FGV-SP, publicou o relatório “Preservar o espetáculo, garantindo a segurança e o direito à cidadania”, que propôs medidas para evitar confrontos durante partidas de futebol. Naquele mesmo ano, Reis promoveu reuniões entre integrantes do Ministério dos Esportes e representantes de torcidas organizadas. Um resultado do processo foi a criação da Associação Nacional de Torcidas Organizadas (Anatorg). “Desde então, a Anatorg tem desempenhado um papel fundamental na pacificação da violência ligada ao futebol no Brasil”, afirma Reis.
A geração mais recente de pesquisadores incorporou o entendimento de que o futebol é um vetor da vida social brasileira, diz Hollanda. Esse entendimento produziu uma onda de estudos sobre as dinâmicas sociais que se manifestam em jogos, sobretudo entre as torcidas. “Mesmo depois que passou a década do esporte, o interesse por estudá-lo continuou se expandindo. Hoje, orientamos muitas pesquisas sobre gênero, raça, sexualidade e temas semelhantes no futebol”, afirma o pesquisador da FGV.
Camisa 10 da seleção feminina, a jogadora Marta passa instruções para suas companheiras durante partida contra a Argentina, no estádio Exploria, em Orlando, Flórida, em 2021Alex Menendez / Getty Images
Os clubes também passaram a reconhecer seu papel social e adotaram políticas para reinterpretar sua história. Hollanda cita iniciativas como a do Esporte Clube Bahia, que associa suas três cores (azul, vermelha e branca) ao arco-íris da diversidade sexual, a da Associação Atlética Ponte Preta, que busca ser reconhecida como primeira agremiação a incluir atletas negros, e a do Fluminense Futebol Clube, que visa reverter sua imagem de clube elitista por meio de uma websérie a partir de um torcedor pioneiro, o capoeirista Chico Guanabara, que era negro.
Essas iniciativas se beneficiam de investigações acadêmicas, como as do sociólogo José Jairo Vieira, da UFRJ, autor do livro As relações étnico-raciais e o futebol do Rio de Janeiro: Mitos, discriminação e mobilidade social (Mauad, 2018). A pesquisa de Vieira lança luz sobre fenômenos racistas que por décadas permaneceram invisíveis ou ignorados. Em 2014, com a Copa do Mundo e em reação à recorrência de casos de injúria racial contra jogadores como Tinga, Arouca, Aranha e Márcio Chagas, o administrador gaúcho Marcelo Carvalho criou o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, que produz relatórios anuais sobre a realidade observada nos estádios brasileiros. Em 2021, foram registrados 158 casos de racismo.
Os clubes também estão tendo que se adaptar à mudança de cultura e de legislação para promover a expansão do futebol feminino, proibido no Brasil entre 1941 e 1979. A participação no Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro (Profut) exige, desde 2015, que as agremiações invistam em equipes femininas, o que levou ao fortalecimento de torneios regionais e nacionais. Campeonatos como a Copa Libertadores da América têm transmissão pela televisão, e a seleção nacional já produziu ídolos populares como Marta e Formiga.
A violência simbólica que Reis enfrentou quando jogava pelo Guarani não desapareceu. O espaço das mulheres no futebol continua limitado, alerta a professora da Unicamp. Nas torcidas organizadas, elas ainda são minoria e, embora tenha havido uma expansão na última década, as atividades atribuídas a mulheres seguem subalternas. Assim como as praticantes na década de 1980, atualmente árbitras e auxiliares sofrem agressões verbais misóginas. A legislação que visa promover a profissionalização das jogadoras, como a Lei n° 12.395/2011, atualização da Lei Pelé que obrigou os clubes a registrar atletas acima dos 20 anos, é sistematicamente violada, lamenta.
Ainda assim, a pesquisadora e ex-jogadora afirma que a condição das mulheres melhorou substancialmente tanto dentro de campo quanto nas arquibancadas, a despeito de ocasionais retrocessos e da persistência do registro de violência de gênero nos estádios. “Moro perto do mar e me emociono muito vendo tantas meninas pequenas praticando futebol na areia, às vezes com o pai e a mãe. Para mim, jogar era um desafio e uma luta. Para elas, é um hábito perfeitamente normal”, comenta.
Artigos científicos BROCH, M. Histórico do futebol feminino no Brasil: Considerações acerca da desigualdade de gênero. Temporalidades. ed. 35, v. 13, n. 1. 2021. HOLLANDA, B. B. Retrato da antropóloga quando jovem: Simoni Guedes – Dos anos de formação a subúrbio, celeiro de craques. Mana. v. 27, n. 1. 2021. LOPES, F. T. P. e HOLLANDA, B. B. “Ódio eterno ao futebol moderno”: Poder, dominação e resistência nas arquibancadas dos estádios da cidade de São Paulo. Tempo. v. 24, n. 2. 2018. MARTINS, M. Z. et al. As mulheres e o país do futebol: Intersecções de gênero, classe e raça no Brasil. Movimento. v. 27. 2021. TEIXEIRA, R. C. et al. I Censo Anatorg: Análise do perfil de lideranças de torcidas organizadas. FuLiA/UFMG. v. 6, n. 1. 2021.
Livros GIGLIO, S. S. e PRONI, M. (eds.). O futebol nas ciências humanas no Brasil. Campinas: Editora Unicamp, 2020. MARTINS, M. Z. A mercadoria do futebol. Paulínia: Autor Esporte, 2017. SOUZA JÚNIOR, O. M. de e REIS, H. H. B. Futebol de mulheres: A batalha de todos os campos. Paulínia: Autor Esporte, 2018. VIEIRA, J. J. As relações étnico-raciais e o futebol do Rio de Janeiro: Mitos, discriminação e mobilidade social. Rio de Janeiro: Mauad, 2018.
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