Literatura de cordel e temas populares nordestinos serviram de inspiração para os trabalhos de Samico e tornaram-se indissociáveis da memória de sua obra – Obras do livro Samico, de Weydson Barros Leal (2011)
Dragões, pássaros de fogo, demônios e serpentes estão no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP. Mas tranquilizem-se, visitantes, estudantes, artistas e pesquisadores. Não há razão para o pânico. O motivo para a chegada dessa fauna fantástica é a doação que o museu acaba de receber. Trata-se de 45 obras do gravador e pintor pernambucano Gilvan Samico (1928-2013), famoso por seu universo imagético inspirado na literatura de cordel e nas mitologias de vários povos do planeta (leia mais sobre a vida e obra do artista no box abaixo). As 45 obras recebidas pelo MAC são uma doação de Joaquim Falcão e de sua esposa, Vivianne, que foram amigos próximos do artista. Falcão é jurista, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e fundador e ex-diretor da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Vivianne é advogada e conselheira da Humanitas 360.
A coleção que o casal entrega agora aos cuidados do MAC foi construída ao longo das décadas e comporta diversos presentes oferecidos por Samico ao casal. São estudos, pequenas gravuras e rascunhos, alguns deles ainda conservando as dedicatórias, como é o caso da prova do artista de Cena campestre, xilogravura de 1957. A obra foi recebida pelo museu acompanhada de um pequeno recorte, onde se lê “Para Vivianne, a primeira XILO. SAMICO E Célida Olinda, 7 janeiro 2006”. Célida era a esposa do artista.
É um acontecimento para o MAC, que vê sua coleção de obras de Samico saltar de duas para 47, além de tornar geograficamente mais plural o acervo do museu, concentrado no eixo Rio-São Paulo. “Samico está entre os grandes gravadores brasileiros”, comenta a professora Ana Magalhães, diretora do MAC. “Ele tem importância fundamental porque está ligado ao Movimento Armorial, junto de Ariano Suassuna e outros artistas e intelectuais, com um papel decisivo na divulgação dessa cultura local.”
Cena campestre, 1957 – Xilografia sobre papel
Ana classifica o gravador como um artista sofisticado, que realiza o encontro entre o popular e o erudito. “Vemos isso no modo como ele elabora suas matrizes. Samico trabalha com refinamentos técnicos muito especiais. Ele não é propriamente um artista popular, mas pelo envolvimento com as poéticas do Armorial e o conhecimento da literatura de cordel, isso aparece em suas obras.”
Ave de ouro do reino vai-não-volta, 1967 – Xilografia em cores sobre papel
O conjunto recebido pelo MAC é composto de 39 xilogravuras – técnica que consagrou Samico –, duas águas-fortes, dois estudos para gravuras, uma litogravura e uma pintura a óleo. Juntos, os trabalhos traçam um panorama da carreira do artista, que se estendeu por sete décadas. A peça mais antiga data de 1957 e a mais recente, de 2003, sendo que a maior parte das obras foi produzida nos anos 1950 e 1960. Dentre as xilogravuras, 17 são provas do artista, exemplares de teste feitos antes da realização das tiragens oficiais. Há ainda uma peça única, Ave de ouro do reino vai-não-volta, de 1967.
Segundo Ana Magalhães, ainda não há previsão de uma mostra apresentando as obras de Samico ao público. “As obras estão em fase de catalogação e precisamos de tempo tanto para isso quanto para pensarmos em uma mostra. Mas logo todos os trabalhos estarão à disposição no acervo on-line do museu”, afirma a diretora do MAC.
Muitas das obras criadas por Samico e agora doadas ao MAC pelo casal Falcão nasceram em sua oficina no terceiro andar de um casarão, próximo ao Mosteiro de São Bento, em Olinda. E a vizinhança lhe proporcionaria contato íntimo com um casal de admiradores que, décadas mais tarde, seria responsável por entregar suas obras aos cuidados do MAC.
Quando o casal Joaquim e Vivianne conheceu pessoalmente Samico, Falcão já era um apreciador de seu trabalho. O encontro, que viria a se tornar convivência, aconteceu graças às “vias do acaso”, como recorda o jurista.
“Sou pernambucanamente carioca e minha família é toda de Pernambuco. Inicialmente, morávamos na Ladeira da Misericórdia, mas depois Vivianne e eu fomos para a Rua de São Bento, para uma casa histórica que pertenceu a João Fernandes Vieira, um dos restauradores na luta contra os holandeses. A parede da nossa casa era a mesma da casa do Samico. Então, ficamos sendo não apenas vizinhos, mas emparedados na mesma vizinhança, com uma troca cotidiana de visitas e ideias.”
Casal de doadores Joaquim e Vivianne Falcão – Foto: Arquivo pessoal
Vivianne se recorda do artista como uma pessoa extremamente sofisticada e dotada de grande simplicidade, com quem compartilhava cafés da tarde e conversas ao pé da porta de casa. “Samico era uma pessoa muito humana, sem nenhuma pieguice, mas muito doce.” A amizade também se tornou admiração por sua arte. “Ele possui uma obra que é local e, ao mesmo tempo, universal. Seus signos podem ser entendidos de qualquer lugar.”
Os trabalhos de Samico que o casal doou ao Museu de Arte Contemporânea foram, em sua maioria, presentes que o artista deu ao casal de amigos. Junto aos presentes, o conjunto reunido por Falcão e Vivianne também inclui obras adquiridas pelo casal no mercado, sobretudo produções das primeiras décadas de atividade do gravador. “Foi algo feito no dia a dia, uma a uma”, recorda Vivianne. “Lembro que já tínhamos algumas obras e fomos procurando aquelas que não tínhamos, com sintomas de obsessão.”
A decisão de entregar para o MAC esse acervo, íntimo e construído com afetividade e empenho, foi tomada em virtude de uma caraterística central do museu: ser mais que um espaço de exposições, mas uma instituição de ensino e pesquisa. “Os motivos que nos levaram a sair de Pernambuco e ir para São Paulo não foram somente a estabilidade e a competência do MAC e da USP, mas também o fato de serem um setor de ensino, onde se pesquisa, se escreve, se consegue um título de mestre ou doutor”, pontua Falcão.
Contou também para que a coleção ficasse com a USP a quantidade reduzida de obras do gravador então existentes no acervo do MAC. Antes da doação, eram apenas duas. Com a chegada de mais 45 trabalhos, o museu passa a ter uma quantidade expressiva das obras do artista, que trafegam por vários períodos de sua carreira. “São Paulo, hoje, congrega o Brasil inteiro, as coisas funcionam com competência”, comenta Vivianne. “A USP poderá dar visibilidade ao trabalho do Samico. Olhando em retrospectiva, seria impensável outra instituição.”
Nos anos 1970, a obra de Samico integrou as fileiras do Movimento Armorial, interessado em criar uma arte erudita com bases na cultura popular nordestina
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O galo de ouro, 1965. Xilogravura em cores sobre papel
A vocação para pesquisa do MAC tem a ver com sua posição como museu universitário. Integrado à USP, ensino, pesquisa e extensão fazem parte de sua missão institucional. Isso significa que, além de compor futuras exposicões, as obras de Samico serão mobilizadas na formação de estudantes e servirão de fonte para pesquisas acadêmicas.
O Museu de Arte Contemporânea da USP foi criado em 1963, a partir do acervo do antigo Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. Atualmente, está localizado na região do Ibirapuera, em um prédio projetado por Oscar Niemeyer nos anos 1950. Possui aproximadamente 10 mil obras em seu acervo, sendo que 7,3 mil estão disponíveis para consulta pública. Em 2023, o número de visitantes da instituição chegou a 408 mil.
Seu quadro docente é composto hoje por quatro professores, que orientam sete mestrandos, dez doutorandos e seis pós-doutorandos. Além disso, o museu conta com 56 estagiários estudantes de graduação. Está vinculado a dois programas de pós-graduação da USP, o de Estética e História da Arte e outro de Museologia. Juntos, esses programas interunidades contabilizam quase 200 estudantes. Além das disciplinas oferecidas aos alunos de mestrado e doutorado, o MAC também disponibiliza disciplinas optativas para os graduandos da Universidade.
“Uma coleção como a nossa é um centro de pesquisa”, comenta a diretora do museu, Ana Magalhães. “O acervo do MAC é aberto a qualquer pesquisador, dentro ou fora do País. Recebemos pessoas de todo o mundo para estudá-lo. Com isso, damos uma publicização para essas obras que vai além do espaço de exposição”, afirma ela. Este é o caso das obras recém-chegadas de Samico. A diretora do MAC ressalta que, mesmo que o acervo de Samico recebido pelo museu ainda não esteja aberto ao grande público, ele pode ser consultado por pesquisadores. “O fato de não haver ainda uma mostra programada não significa que as obras estejam indisponíveis para pesquisa. Os pesquisadores interessados poderão estudar as obras de Samico sem problemas”, conclui Ana Magalhães.
Gilvan José Meira Lins Samico nasceu em 15 de junho de 1928, em Recife. Começou a se interessar pelo desenho ainda criança e os primeiros passos foram na pintura, seguindo as veredas do autodidatismo. Em 1948, após empregos de curta duração e com a família consciente de que seu futuro estava mesmo nas artes, passou a integrar a Sociedade de Arte Moderna do Recife, fundada pelo pintor e arquiteto Hélio Feijó, grupo comprometido com a renovação artística e cultural da cidade.
Ainda experimentando com a pintura – meio expressivo que seria ofuscado pela xilogravura, mas jamais abandonado, como atesta um óleo sobre tela sem título de 1977 recebido pelo MAC –, Samico se junta a outros artistas da Sociedade e funda o Atelier Coletivo, em 1952. Espaço de aprendizado e trabalho compartilhado, vinculado a uma arte de caráter social e pelo qual passaram nomes significativos da cena pernambucana. É lá que teria seu primeiro professor, Abelardo da Hora (1924-2014), e começaria a gravar, em 1954, utilizando placas de gesso.
Gilvan Samico em sua oficina, no casarão onde residiu em Olinda (PE) – Foto: Helder Ferrer, tirada do livro Samico, de Weydson Barros Leal (2011)
Vontade e oportunidade de aprimorar os conhecimentos levam Samico a deixar o Recife. Viveria por quase sete anos longe do estado natal, tendo breves períodos de aprendizado no Sudeste, com dois mestres da gravura. O primeiro foi Lívio Abramo (1903-1992), com quem estudou por cerca de seis meses na Escola de Artesanato do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, em 1957. No ano seguinte, acompanharia durante um mês o curso de Oswaldo Goeldi (1895-1961), na Escola Nacional de Belas Artes (Enba) do Rio de Janeiro. Na então capital do País, trabalharia ainda no escritório do designer gráfico e conterrâneo Aloísio Magalhães.
Com o final da década de 1950, a xilogravura se imporia definitivamente em sua produção, ao mesmo tempo em que Samico batalhava para encontrar seu próprio jeito de se expressar com a madeira. Seria na virada da década, e sobretudo a partir dos anos 1960, graças a um conselho de Ariano Suassuna, que o artista encontraria seu caminho.
Morando no Rio de Janeiro e insatisfeito com os rumos de suas obras, durante uma viagem para Pernambuco Samico teve um encontro decisivo com Suassuna. Nele, desabafou a respeito de seu descontentamento e pediu conselhos ao escritor. A sugestão de Suassuna foi que o artista mergulhasse na literatura de cordel. É o próprio que relembra o episódio no livro Samico, de Weydson Barros Leal (Bem-Te-Vi Produções Literárias):
“No início da década de 1960, fui procurado por Gilvan Samico, que, com a cortesia e a humildade que sempre o caracterizaram, pediu-me uma orientação para seu trabalho no campo do desenho, da pintura e, sobretudo, da xilogravura. Foi então que eu lhe disse para mergulhar no universo mágico e poético do Romanceiro Popular Nordestino, universo que lhe daria, a meu ver – e o tempo mostrou que eu não estava errado – um rol inesgotável de temas para sempre trabalhados em sua obra, já então caracteristicamente figurativa, mas profundamente marcada por escolas e estilos europeus, a exemplo do expressionismo.”
Estava feito. A descoberta do romanceiro popular preencheu os moldes de Samico com personagens bíblicas, animais fantásticos, paisagens e arquiteturas sertanejas, religiosidades e narrativas populares. Desse universo sairiam várias das xilogravuras que agora integram o acervo do MAC, como Paisagem com pavão (1961), Alexandrino e o pássaro de fogo (1962), Juvenal e o dragão 1 (1962), Tentação de Santo Antônio (1962), O pecado (1964) e O triunfo da virtude sobre o demônio (1964).
Paisagem com pavão, 1961 – Xilografia em cores sobre papel
Alexandrino e o pássaro de fogo, 1962 – Xilografia em cores sobre papel. / Juvenal e o dragão 1, 1962 – Xilografia em cores sobre papel
Na senda certa, o artista volta a Pernambuco em 1965, fixando residência na cidade de Olinda, em um casarão de três andares que lhe serviria de moradia e oficina por praticamente toda a vida. Três anos mais tarde, em 1968, graças a um amigo que inscreveu, sem seu conhecimento, três gravuras suas no 17o Salão de Arte Moderna do MAM do Rio de Janeiro, Samico recebe um prêmio de viagem ao exterior. A surpresa rende ao artista dois anos na Europa, período, entretanto, em que não produz novas xilogravuras.
Quando retorna definitivamente ao Brasil e a Olinda, no início dos anos 1970, é convidado formalmente por Suassuna a integrar o Movimento Armorial, que procurava produzir, em diversas linguagens, uma arte erudita com raízes nas tradições populares nordestinas.
Curiosamente, como o próprio Samico reconhece e uma análise atenta de suas obras revela, é a partir daí que as referências do romanceiro popular e da literatura de cordel vão se tornando mais sutis em sua produção. As paisagens sertanejas e a religiosidade popular vão se diluindo em imagens mais cifradas, que passam a compor um universo próprio, repleto de figuras geométricas, simetrias e paralelismos. Tempo e lugar tornam-se indefinidos e seus animais fantásticos e seres humanos se tornam mais signos do que representações de elementos reconhecíveis.
São exemplos dessa tendência o estudo para a gravura O guardião (1979) e as xilogravuras O sonho de Mateus (1987), A queda (1992) e A espada e o dragão (2000). Mitos e lendas originários de vários cantos do mundo passam a fornecer material para suas criações, como aqueles contidos na trilogia Memória do fogo, do escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015). Em paralelo, o perfeccionismo de Samico vai se acentuando cada vez mais, tornando sua produção rarefeita. Nas décadas de 1980 e 1990, em geral, o artista produziria uma única matriz por ano. Gilvan Samico morreu em 25 de novembro de 2013, aos 85 anos. E deixou como legado uma série de obras definitivas que, como registrou o poeta Ferreira Gullar, tinha “uma linguagem clara, límpida, mas plena de ecos. Ela é assim jovem e arcaica”.
A espada e o dragão, 2000 – Xilografia em cores sobre papel
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