Acesso aos alimentos, insegurança alimentar e diversidade da alimentação brasileira são aspectos considerados na disciplina de Medicina Culinária – Tânia Rêgo/ Agência Brasil
. Você ou algum conhecido já pode ter ouvido de um médico ou médica a recomendação para reduzir o sal da comida, por exemplo, como forma de contribuir com o tratamento de alguma doença. Também é comum a indicação de alimentos considerados mais saudáveis para a dieta. “Substitua o óleo de soja pelo azeite de oliva”, “no lugar de carne vermelha, que tal incluir o salmão na dieta?”. Essas podem ser algumas das frases escutadas em consultórios médicos. No entanto, esse discurso muitas vezes não está alinhado à realidade do paciente.
. Em um país como o Brasil, onde mais de 30 milhões de pessoas vivem em situação de insegurança alimentar, conforme dados da Rede Penssan, não é viável recomendar trocas como essas ao indicar caminhos para uma alimentação mais saudável. Alimentos caros não cabem no orçamento de uma grande parte da população, que enfrenta dificuldades para comprar o essencial para sobreviver. E os profissionais de saúde, que estão na ponta, especialmente nos serviços públicos, precisam saber disso.
. Essa foi uma das motivações para a incorporação da disciplina de Medicina Culinária, há quatro anos, no currículo dos futuros médicos e médicas formados pela Universidade de São Paulo (USP).
. Em entrevista ao programa Bem Viver, a professora Thais Mauad, docente da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), conta que o curso pioneiro no país foi inspirado em escolas estadunidenses, mas adaptado para a realidade brasileira.
“O médico tem que lembrar que não vai poder oferecer salmão e óleo de oliva, né? Que isso não faz parte da nossa realidade.”
. Ela acrescenta que a formação dos estudantes é pautada na nossa biodiversidade alimentar. “Em São Paulo, a gente está lidando com pacientes de toda a parte do país, então tem que respeitar essa cultura alimentar. Introduzir mais biodiversidade, que às vezes é mais barato. Se você for pensar nas [plantas alimentícias não convencionais] PANCs, por exemplo, você consegue cultivar na sua casa e colocar na alimentação uma verdura fresca. E pensar em alternativas baratas, nutritivas e saudáveis que existem”, explica.
. Segundo a professora, a questão da alimentação ainda é subestimada dentro do currículo médico, apesar de os alimentos serem um aliado importante na prevenção e manejo de doenças.
. “O que esse curso, na verdade, quer é abrir um pouquinho o olho do futuro médico para ele perceber que a alimentação, e não só a alimentação, mas atividade física, saúde mental, o estilo de vida são fatores que tem uma importância muito grande na gênese e no manejo de várias doenças”, ressalta.
.
. O Sistema Único de Saúde (SUS) conta com profissionais habilitados para atendimentos nutricionais. Um ponto que a docente faz questão de destacar é que a disciplina de Medicina Culinária não pretende, de modo algum, capacitar o médico para substituir o nutricionista, mas, sim, prepará-lo para lidar com questionamentos dos pacientes relacionados à alimentação.
. “Considerando as realidades que a gente vive, muitas vezes esse médico vai ser confrontado com perguntas. “Doutor, posso comer isso?” “Posso comer aquilo?” Se você fala “tira o sal”, mas não sabe como, você fechou uma porta de diálogo. Então essa é nossa ideia, que esse médico possa conhecer, entender o que é a cozinha, o que é o alimento e tentar repassar isso para os seus pacientes”, conta.
. Entre os problemas de saúde que se relacionam com a alimentação, a médica Thais Mauad destaca as doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, obesidade e hipertensão. Ela aponta a associação desses males com o elevado consumo de alimentos ultraprocessados pela população, especialmente em um cenário de alta no preço dos alimentos e agravamento da insegurança alimentar no país.
. “Eles têm muito sal, muita gordura e muito açúcar. A gente tenta bater nessa tecla com os estudantes, mostrar esses aspectos, explicar os malefícios do excesso de sal, do excesso de açúcar. Mostrar que ultraprocessado é a desconstrução dos alimentos. A gente acha que consegue conversar, abrir o olho deles para isso, que é um problema grave”, afirma.
. A sustentabilidade é outro ponto que faz parte da ementa do curso, de modo a chamar a atenção para a redução do lixo produzido e também para o aproveitamento integral dos alimentos.
. “Na aula, a gente tenta chamar atenção da quantidade de resíduo plástico que a gente gerou, que é uma coisa que também faz parte do nosso curso. Abrir os olhos para como se cozinha de uma maneira mais sustentável. A gente preza muito também pelo uso integral dos alimentos. Então todas as nossas receitas vão ter alguma coisa como casca da banana, justamente pensando como se repassa para um paciente que está em insegurança alimentar que é uma coisa a menos para jogar por uma coisa mais que pra consumir.”
. A abordagem da questão da alimentação na formação dos estudantes é apenas um reforço no sentido de garantir que a população se alimente de forma mais saudável. A garantia da segurança alimentar e nutricional, no entanto, é um tema que passa pela formulação e implementação de políticas públicas voltadas para o tema, como defende a professora.
. “Com o retorno de políticas públicas em relação à agricultura familiar, merenda escolar, segurança alimentar, a gente consegue sair de novo, disso [do Mapa da Fome]. Alimento tem. Não é falta de alimento”, conclui.
Assine as notícias da Guatá e receba atualizações diárias.