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Grupo “Oz Guarani” produz músicas que denunciam opressões históricas contra os povos originários – Foto: Reprodução/Facebook
Unindo uma manifestação artística recente e uma cultura ancestral, o rap indígena é um fenômeno que vem crescendo nas plataformas de streaming e adentrando o universo acadêmico. Um artigo recentemente publicado por pesquisadores da USP descreve a relação que criaram com três jovens indígenas, da etnia Guarani Mbyá, nos primeiros passos para a formação do grupo de rap Oz Guarani. A publicação destaca o processo criativo do grupo como um ato de resistência para a sobrevivência de sua cultura, e define sua performance como um “ativismo artístico”.
. De acordo com Kleber Nigro, doutorando do Instituto de Psicologia (IP) da USP e autor do artigo, o pequeno repertório do Oz Guarani é composto de canções anticoloniais focadas nos 520 anos de conflito entre os guaranis e os invasores não indígenas de suas terras, “em cujas letras também manifestam sua distinta cultura milenar”.
A aproximação de Kleber com os integrantes do grupo de rap indígena – sob supervisão de seu orientador, também indígena, Danilo Guimarães -, se deu no contexto de criação e consolidação da Rede de Atenção à Pessoa Indígena, do IP, diante da experiência artística prévia de Kleber. DJ experiente, ele também estudou, durante o mestrado, o Teatro jaguarizado contra a colonização do pensamento.
Kleber Nigro trabalhou com o grupo Oz Guarani em sua primeira formação – Foto: Arquivo Pessoal
. Kleber identificou, no modo de vida guarani e nas composições dos jovens rappers indígenas, argumentos que a literatura acadêmica descreve com certo distanciamento observador. Parte da rotina com o grupo consistia em reuniões de horas para trocarem músicas, letras, batidas e canções. .
Um dos integrantes do início do grupo é Mirindju Glowers. Ele saiu do Oz Guarani e segue em carreira solo, além de produtor e descobridor de novos talentos do rap indígena, entre eles o grupo Mbya Mc’s. Mano Glowers conta que o grupo está em fase de gravação do single Nosso Poder 2, continuação da música composta por ele e lançada pelo grupo há cerca de seis meses.
Mano Glowers vive na Terra Indígena Jaraguá apoiando outros jovens indígenas rappers – Foto: Arquivo Pessoal
Glowers relata que o rap indígena guarani se caracteriza por ser uma música bilíngue e de integração de seu povo. “O Oz Guarani surgiu durante uma reintegração de posse aqui no território. Para bater de frente com isso, os dois jovens aqui do Jaraguá, o Jefersom e o Vlad, fundaram esse grupo e depois de um ano eu fui acolhido. Fiz composições, somei, para falar do cotidiano real do que a gente passa aqui na aldeia. É uma luta constante, não só para nós, mas em outras etnias”, conta. .
No dia 30 de maio, indígenas da Terra Guarani Jaraguá organizaram um ato na Rodovia dos Bandeirantes contestando a aprovação do projeto de lei que pode inviabilizar as demarcações de Terras Indígenas e abrir áreas já demarcadas para exploração e empreendimentos – Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
. O dia 11 de agosto de 1973 marca o nascimento do hip hop. Há quase 50 anos, uma festa organizada pelo DJ jamaicano Clive Campbell – conhecido como Kool Herc – e sua irmã, Cindy, no bairro do Bronx, teve como intenção arrecadar fundos para a volta às aulas. Em sua Back to School Jam, Herc isolou a batida da bateria em discos de hard funk, surgindo assim o breakbeat, música base do hip hop. Neste contexto, surgem as bases fundamentais do movimento, entre elas a dança break e o rap. No ano passado, o Senado dos EUA reconheceu a data como Dia Nacional de Celebração ao Hip Hop, tornando-a feriado nacional. . “Eles queriam romper com essa cultura disco, muito disseminada em Nova York. Mas esse cara [Herc] começa a tocar soul e funk, especialmente James Brown”, afirma Kleber. O pesquisador lembra que, no Brasil, o movimento floresceu no início dos anos 1980, essencialmente como uma cultura de rua, ligada aos afrodescendentes e às populações pobres. “Uma arma contra a invisibilidade, uma poderosa ferramenta de expressão e transformação”, explica. . A partir da pesquisa da literatura, seu trabalho identifica a relação da música com os territórios de origem. “Um dos motes do rap para a população afrodiaspórica é resgatar o orgulho em ser o que se é; ser negro, na própria etnia. Os indígenas não precisam resgatar isso, pois estavam e permanecem aqui, há mais de dois mil anos”, pondera. . Apesar das diferenças, Mano Glowers diz que se identificou com o movimento. “Em 2014 eu tive essa conexão com o rap, ainda mais enquanto indígena de uma grande cidade como São Paulo. No meu ponto de vista isso é ativismo, por fazer parte da luta do povo”, diz. . Para Kleber, esta é uma “intersecção maluca”, de um movimento muito recente, ainda em ebulição, com uma cultura de dois mil anos de relação com o território, com o ambiente e com a natureza. “A forma que eles encontraram de combater o apagamento foi fortalecendo a cultura”, afirma.
. O artigo Criatividade como resistência para sobrevivência: o anticolonial grupo de Rap indígena “Oz Guarani”é um dos capítulos do livro A Dialogical Approach to Creativity, publicado pela Palgrave Studies in Creativity and Culture, do grupo Springer Nature. O livro investiga a criatividade como um fenômeno sociocultural e a cultura como um processo transformador e dinâmico. . No artigo, Kleber aprofunda a ideia previamente exposta em seu mestrado de “alteridade canibal”, tido como um violento sistema de forças para uniformização cultural. O autor argumenta que o conceito pode configurar uma ferramenta para a psicologia, permitindo identificar processos nocivos e indicar caminhos para experiências de vida com maior dignidade e liberdade. . O pesquisador destaca a atuação de seu orientador, um dos mais jovens livres-docentes da USP, e grande catalisador de outros pesquisadores indígenas na Universidade, como Julieta Paredes Carvajal, do povo Aymara, da Bolívia, e Tácio Sales Carvalho, de origem Pataxó. Atualmente, ele procura desenvolver estudos acerca de uma psicologia indígena, baseada na escuta das ideias dos povos originários sobre a relação com os colonizadores. Danilo Guimarães coordena o serviço Rede de Atenção à Pessoa Indígena da USP desde 2015. . Um dos conceitos propostos pelo orientador de Kleber é o da “apreensão afetiva da experiência”. Ela é o que estabelece a possibilidade de entendimento mútuo em um campo intersubjetivo, como a arte.
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