Escrevo, hoje, em primeira pessoa, apenas e tão somente, na qualidade de professor titular da UFRJ. Não falo senão por mim mesmo, com as cordas vocais que me constituem.Pergunto até quando Catilina irá abusar da nossa paciência, e qual o tamanho do abismo a que nos leva? Procuro modular minha indignação diante dos ataques desferidos à Constituição de 1988. Fruto soberbo de uma transição inacabada para a democracia, nossa Carta Magna vive sob estado de sítio. Espero que o Supremo desperte do sono dogmático e compreenda, de modo frontal, a gravidade do momento.Só o tempo dirá como chegamos ao presente estado de coisas e quem sequestrou nossa frágil democracia. Só o tempo dirá quais foram os arquitetos desse frágil castelo de cartas, e quem feriu o coração da República.Tenho mais de 50 anos e nunca me senti tão vilipendiado como professor. Os reitores das universidades são tratados como agentes da desordem e do “marxismo cultural”. O ministério ameaçou corte de verba por motivos impensáveis a três universidades. Ao perceber que era inconstitucional, abriu fogo contra todos.Houve quem defendesse o fim do ensino da Filosofia e da Sociologia. Um argumento interessante para documentar a que ponto chegamos.Nosso original chanceler, na mesma linha ortodoxa, disse que a autoridade máxima do país era o novo Messias, a pedra angular que todos rejeitaram.Sugiro que façamos um estudo do campo semântico da política atual, seguindo o “Linguagem do Terceiro Império”, de Viktor Klemperer.De onde tiraram a loucura de acabar com os cursos de Filosofia e Sociologia? Em que país do mundo, em que regime totalitário se ousaria tamanho dislate? Um misto de soberba e despreparo de hooligans, ungidos por um deus odioso.Mas é também um plano, para adestrar a universidade pública. Poderão ensinar, em casa, que a Terra é plana, ou quadrada, que a evolução não existe, que só a Bíblia interessa, e que a ciência sem religião é de satanás.Sou um péssimo exemplo: cursei História na UFF. Sou professor de literatura. E bem mais grave: com pós-doutorado de Filosofia na Alemanha. Deveria ressarcir os cofres públicos.Fico espantado que não tenham lido Max Weber, Karl Mannheim e, nem tampouco, o “deletério” Karl Marx, homem de vasta cultura. Esse filósofo, de barba selvagem, trazia no DNA o escândalo da desigualdade entre os homens. Ele e Francisco, o de Assis e o do Vaticano. Todos a serviço do “Fórum de São Paulo”.Não há problema se você é de direita ou de esquerda. O que espanta é a surda arrogância, o ódio à cultura e as paixões violentas.Certo ministro segue a cartilha do “filósofo” do turpilóquio, o das palavras grosseiras. É chocante a baixa qualidade do debate. Querem uma posição mais moderada? Pois muito bem, leiam Norberto Bobbio, leiam Karl Popper e Bertrand Russell. E compreendam a dignidade republicana dos cargos que ocupam.Não agridam a liberdade de cátedra, assegurada na Constituição. Os professores são tratados como espiões da KGB, dispostos a favorecer a entrada dos tanques soviéticos através de nossas fronteiras. É um caso psiquiátrico. Leiam o Manual de Diagnósticos (DSM-5).Eis a luta da “pedra angular” contra o dragão da maldade. Somos filhos do demônio, os professores, hereges que não obedecem à cartilha do pensamento único, se ainda houver conjunto de neurônios capazes de pensar.A Universidade pública é a maior conquista da sociedade civil. Compõe um capítulo formidável na História do Brasil e do Ocidente. Possui altos níveis de excelência, jamais deixou de rasgar novos horizontes científicos, apesar da verba irrisória.Peço aos que cuidam da educação maior cuidado. Que não se torne a dizer que o corte no ensino superior vai abrir mais creches. Esse dilema não existe. Trata-se de uma falácia que se aprende num simples manual de lógica.Porque não é matéria de Veterinária, mas de Filosofia.A diversidade do pensamento é o que interessa: de Kafka (com K) a Agostinho, de Adam Smith a James Joyce (com Y). O diálogo construtivo sem ódio e sem anátema.Não busco a imprecação e o pugilato. Trabalho no campo das ideias, de modo contundente e ao mesmo tempo respeitoso.Mas não vou assistir, de braços cruzados, ao desmonte da Universidade pública.”
______________________________ Marco Lucchesi é professor. (*) Texto reproduzido de “O Globo”, edição de 10 de maio de 2019.(**) Observação – Lucchesi, também poeta, escritor, ensaista, é o atual presidente da Academia Brasileira de Letras. E, no caso deste artigo, esclarece que assina apenas em seu nome e não da instituição que dirige.
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