Marta apenas sorri, tentando distrair os olhos encharcados com lágrimas que não são de dor. Na boca, amargume, do trago que não experimentou. Nunca provou. Nem no tempo em que era levada por Jorge, Gilda e Toni, a desbastar mansamente o entardecer, programando-se, para logo depois, se atirarem nas sessões de Hair e submarino, a stanheguer, aumentando a pendura no bar do Ivo. Em seguida, partiam a bolear frases desastrosas contra o cimento das paredes, na banda pioneira do centro da cidade.
Os libertários, como os amantes e os bêbados, preferem o refúgio notívago que acolhe e protege contra o questionamento réplico da razão. A noite também disfarça a descendência parenética de filhos bem nascidos, que um dia irão administrar as sobras fiduciárias da família.
A Marta, porém, mantinha-se longe dos excessos. Participava apenas da vigília, denunciando a chegada da rádio patrulha do cabo Mór. O magrelo e esperto Jorge, pôde-se entender mais tarde, era sua única empolgação, motivo singular que a fazia aturar a turma em seus devaneios de rebeldia e estroinice.
As cartas nunca mentem, gabarolava a vidente, enquanto espalhava o surrado carteado sobre a mesinha improvisada, protegida pelos entulhos enviesados sobre a calçada da São Félix.
Os fiscais e os policiais corruptos não deixam ninguém trabalhar em paz, emendou, riscando no tablado o unhado mal cuidado, que destoava do olhar fulgurante, cravado no rosto tingido de rasa maquiagem.
Nossos mortos não se foram. Num mudo silêncio, passeiam despercebidos por lugares que já foram seus, onde deixaram marcas de uma existência breve, exígua, se comparada com a infinitude do mundo que agora habitam.
Nem tudo foi terminado, resolvido. Sempre fica alguma coisa para depois. Pensam os tolos ser reminiscências, só. Mas, não. Estão todos aqui, agora, insistindo em concluir o que ficou para trás: a palavra interrompida, a carta não respondida, o amor desavisado, o adeus, a despedida. O roçar de pernas às seis!
Pareciam ser de Jorge as palavras da adivinha pensou Marta. A normalidade em lidar com o sinistro o fazia viver. Sempre irrompia sobre a imortalidade da alma e a insignificância da morte. “Morirse tiene que ser el hecho más nulo que puede sucederle a un hombre”, costumava repetir Borges, pelas palavras de Macedonio Fernández, e acabava a conversa ao imitar o acordeão, a sarjar o silêncio, como nos versos.
A vidente entrega-lhe o troco. Filante de um cigarro do rapaz que passa ao lado, despede-se, camuflando-se na multidão sem olhar para trás, como se partisse em fuga.
Marta examina ao seu redor, procurando por algum agente da lei, a afugentar aquela mulher. Enxuga os olhos e segue. Ri, mais uma vez, sentindo a incredulidade ceder à intromissão mágica de alguém que jamais verá de novo, mas que ensinou a deserção de um tempo escape e circunscrito.
– A liberdade, filha, não pode ser o fardo do homem e da mulher livres. Não é lugar, é estado de espírito. Não pode ser medida, já que não pode ser explicada e nem mesmo entendida. Não é viver, a liberdade?
A tardinha vai caindo, fria e ligeira. A vidente já não mais existe. Nem Jorge. Nem Marta.
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