Jose ‘Pepe’ Mujica, 89, e Fabián Restivo, 63, passaram dez dias conversando e, por vezes, repartindo silêncios. O longo diálogo entre o uruguaio de Paso de la Arena, bairro operário de Montevidéu, e o argentino de Buenos Aires se converteu em livro. Palavras para depois – Conversas com Pepe Mujica é o nome que leva. Essa charla comprida, regada a chimarrão e idas ao banheiro no retiro de Mujica, em Rincón del Cerro, nos arredores de Montevidéu, abriu caminho para as reflexões do ex-presidente. Por exemplo, algo que está transcrito na orelha do volume publicado pela Coragem, editora gaúcha:
– Como é possível não perder? Quando olhamos para a magnitude do universo, dos fenômenos físicos, Deus me livre, são aterrorizantes. Isso é o inferno, aterrorizante, e nós parecemos pequenos piolhos que estão por aí.
Mas como a vida é bela, você percebe?
O Jornalista Fabián Restivo na Feira do Livro em Porto Alegre, neste ano – Eduardo Fernandes/CRL
O jornal Brasil de Fato RS também teve sua charla com Restivo. Em Porto Alegre, o colaborador do jornal Pagina 12, mescla de escritor, jornalista, documentarista e fotógrafo, partilhou algo das considerações, ruminações e ações do velho baluarte da esquerda charrua, um arco tão vasto que transita da questão palestina, passando pelas guerras do mundo até uma prosaica troca de vaso sanitário.
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Brasil de Fato RS: Como foi passar esses dez dias com Mujica?
Fabián Restivo: Na realidade, conheço o Pepe há muitos anos e, sempre que vou ao Uruguai, tiro férias da vida e vou sempre falar com o velho. Um dia, um dia um amigo, Daniel Placeres, falou ‘Olha, esses papos de vocês aí tão compridos e vocês deviam gravar e fazer um livro’. E o velho topou e, então, marcamos dez dias. Foram dez dias de falar muito a propósito de tudo. Da vida, da sorte, do mundo, do bairro.
Pepe é uma pessoa que está no mundo o tempo todo. Desde o problema de Palestina até o problema de uma pessoa que quebrou o vaso do banheiro e Pepe conhece alguém que tem um vaso e então vai levar. Passamos dez dias de muita, muita, muita conversa. E isso depois deu lugar a Palavras para depois, que é esse livro que temos hoje.
É quase um diário, não? Tipo, como ele acordou, o que o fez naquele dia. Ah, foi dar ração para as galinhas, depois sentou… Enfim, o que vocês viviam dia a dia.
Uma das coisas engraçadas é que, enquanto estávamos falando de fazer o livro, estávamos com a Lucía Topolansky, a companheira do Pepe. Ela quis saber como seria o livro. Respondi que a ideia é que fosse o dia-a-dia, o que acontece, as coisas que falamos e tal. E ela: ‘Tem que falar a realidade, porque o problema dos livros do Pepe é que cada um escreve o que ele imagina que é o Pepe, sabe? Então você pega os livros dele e parece que o Pepe não come, não caga, não fala palavrão. Nada disso’. Disse que a ideia era que tudo o que fosse falado nos dez dias fosse publicado. Então, o livro tem uma parte que foi muito difícil já que a gente passou muito tempo em silêncio, sabe? Ele é um pouco mais velho do que eu, que eu já sou bastante velho, então…
. Nada, Fabián…
Aos 63, ninguém é jovem, não. E, de repente, passamos muito tempo em silêncio também. E naquele silêncio acontecem coisas. Descrever aquele silêncio foi um trabalho de uma responsabilidade e um rigor carinhoso. Como ele dá de comer as galinhas? Pode pôr o relógio às três da tarde. É quando ele sai com o balde todos os dias. Aquilo é religioso. Tem aquilo. Tem o que acontece com ele quando fala da Lucía. Uma coisa que pactuamos foi sobre uma coisa que ele não iria falar. ‘Vou pedir um favor. Acabou aquilo de eu contar a história da formiga, sabe? De que eu falo com a formiga, que é verdade, mas eu já contei isso mil vezes’. A história da prisão. Não tem. Neste livro tem um homem que foi presidente, que faz a sua vida e que está permanentemente em estado de pensamento.
O livro passa pela história das guerras e do mundo. Tem o cotidiano mas também o pensador, não é? Você foi escrevendo entre as conversas?
Não, foi tudo gravado. São 50 e poucas horas de áudio. E tem uma coisa que, de repente, hoje ele fala, tipo ‘Acho que aquilo é azul. Estou convencido que é azul’. Mas, três dias depois: ‘Ah, falei que aquilo é azul? Repensei e acho que não é’. Estou me referindo a propósito de algum pensamento, alguma questão. Então, o tema começa de novo. Falamos de coisas que vão ficar desclassificadas daqui a 50 anos. Pensei, o que faço? Posso ordenar o livro por tema e seria uma correlação decente. Ou deixar dia por dia, que é uma bagunça muito divertida e, além disso, é a realidade. Aconteceu desse jeito.
“A proposta foi de que o livro fosse divertido. Não poderia ser um discurso, uma palestra
Tenho algumas descrições de espaços e tal, que é uma forma curta de situar o leitor quando vai acontecer aquilo que vou contar. Foi o primeiro passo. O segundo foi que (a proposta) que o livro fosse divertido. Não poderia ser um discurso, uma palestra. E não foi. Há momentos em que ele trata da reação europeia ao final da Segunda Guerra Mundial e o problema que tinha a Europa. De um lado, os norte-americanos e, por outro, o ‘perigo comunista’, e como resolveram aquilo. Naquele dia fazia muito frio e fui ao banheiro umas quatro vezes em uma hora e meia. Então…
Tomando mate.
Claro. Então, volto e digo ‘Escuta uma coisa, velho. Você tem 80 e poucos anos, eu tenho 60 e alguns. Por que vou quatro vezes ao banheiro e você não vai nenhuma?’ E ele: ‘A diferença é que eu tenho que estar com cuidado de não mijar os meus sapatos, você ainda não’. É o senso de humor dele. Num momento, ele conta sobre o encontro com Bush. ‘O Bush veio, esteve aqui, fizemos um churrasco para ele, sabe? Um churrasco, uma beleza. E o cara chegou e pediu uma coca-cola, acredite, filho da… Pediu coca-cola’.
É um insulto cultural. Pepe está bem humorado quase o tempo todo. De repente, com alguma coisa, ele fica puto e você tem que cair fora.
Fica muito bravo?
Não, não. Bravo é uma palavra leve. Quando ele fica bravo com algum tema, ele fala e bate na mesa.
Você já tinha feito algum outro livro nesse estilo?
Nunca fiz e nunca mais vou fazer.
Ninguém merece mais além de Pepe Mujica.
Não, eu não mereço esse sofrimento. Tive uma sorte enorme quando acabei. Tardei sete meses. Para começar. E sete meses em escrever.
Você pergunta ao Pepe se ele tem esperança na humanidade e ele responde ‘Tenho esperança biológica, porque os tempos são solidários. Intelectualmente, tenho dúvidas, mas, no final, quem manda são as tripas. Seria bom incorporar esse conceito. É ideológico porque você não consegue dizer não à vida e tem a fantasia de ter que pensar nela. Por quê? Porque o único milagre que existe acima da Terra para cada um de nós é o milagre de nascer, de estar vivo. Viemos do nada e vamos para o nada. E há uma pequena licença dentro desse nada chamado vida. O que é a vida? Eu sei lá. Uma aventura bioquímica. Não sei o que é.’
Esse é ele. Está sempre refletindo sobre alguma coisa. O tempo todo. Também tem relação com a introspecção. Do espaço dele.
Vive ligado com a Terra, com o clima. É maravilhoso.
Quando você passou esses dez dias com ele?
Há dois anos.
Ou seja, ele não sabia ainda da doença.
Acho que ainda não sabe.
Não?
Não sabe porque não quer. Não está ligando. Ele não dramatiza nunca. Uma vez lhe perguntaram ‘Como você foi preso?` E ele: ‘Fui preso porque corria devagar, deveria ter corrido mais rápido’. Ou então: ‘Naqueles anos na cadeia, tantos, como você passou tantos anos na escuridão? E Mujica: ‘De dia é o policial mas de dia é a luz’. Ele faz isso o tempo todo. Ontem, ele saiu ontem xingando uma pessoa da oposição: ‘Ah, deixa de encher o saco, mentirosa de merda’. O velho está morrendo. Ele vai morrer. Todos nós vamos. De repente, ele sabe, mas não liga.
O que aumenta a importância do livro…
Tem uma coisa que me deixa um gosto estranho na boca. E que o título do livro tem mais de dois anos. E saindo agora, que se chame Palavras para depois, parece um post mortem. E nunca foi a ideia. Mas ficar trocando agora o nome não é justo com o livro, sabe? Por que Palavras para Depois funciona também no sentido de ele aponta questões para o futuro. O que precisamos fazer hoje. Ele fala para o futuro o tempo todo. No livro digo que ele é muito reconhecido. ‘Ah, sim, todo mundo me cumprimenta mas ninguém dá bola para o que digo. Ninguém faz o que digo. Sei disso, mas foda-se o que posso fazer? Você não pode consertar o mundo mas pode resolver algumas pequenas barbaridades que acontecem na vida. É o que eu faço. É o que fiz como presidente e é o que faço como pessoa’.
O Brasil está debatendo a questão da chamada escala 6×1, onde o trabalhador trabalha seis dias e folga apenas um. Mujica nota que o tempo é vida e como você utiliza o seu tempo é a sua vida que você está gastando ali…
Uma das coisas que ele postula é a necessidade de ter tempo à toa. Você precisa disso. Para quê? Para pensar. Não quer pensar, não pensa. Problema teu. Mas que o teu tempo seja o teu tempo. Já é suficiente você ter que trabalhar para viver e pagar as contas. O problema é que, por conta dos exploradores, o lazer tem uma imprensa ruim. Eles vão jogar golfe a semana inteira. Eles vão de iate a semana inteira. O trabalho dignifica. Imagina. Quem quer trabalhar? Ninguém. É tão ruim o trabalho que tem que te pagar para que você faça isso. Agora, por que tem imprensa ruim? Porque os exploradores precisam da moral das pessoas que têm pouca informação, que é a grande maioria.
Saiu um documentário também (sobre o tema), lançado recentemente pelo ICL.
Foi lançado pelo ICL (Instituto Conhecimento Liberta). Foi um trabalho muito cuidadoso. São 45 minutos de um total de 30 horas de vídeo.
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