Apesar de ser um país extremamente diverso, o preconceito linguístico ainda é um fator existente no Brasil – Fotomontagem com imagens de jannoon028/Freepik por Adrielly Kilryann/Jornal da USP
“Uai”, “bah”, “égua”, “oxe”, todas essas expressões regionais fazem parte da diversidade linguística brasileira. Com cinco regiões e mais de 210 milhões de habitantes, o Brasil é um dos países mais diversificados do mundo. Com um vasto território, o idioma pode ser o mesmo, mas cada um possui suas particularidades. O português faz parte da família de línguas que se originou do latim (à qual chamamos de família latina ou românica). Vinda de Portugal no século 16, a língua portuguesa sofreu alterações quando chegou em território brasileiro. O professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH – USP) Manoel Mourivaldo Santiago Almeida fala um pouco sobre o processo de formação dos diferentes sotaques.
“Esse dialeto está em formação, variação e mudança desde seus primeiros contatos ocorridos na extensa região do então planalto de Piratininga entre falantes da língua portuguesa e das diversas línguas indígenas. A partir dos séculos 17 e 18, essa variedade se expandiu para o interior tanto paulista quanto brasileiro, principalmente para o Centro-Oeste do Brasil, tendo como caminho as águas do Tietê, pela ação dos bandeirantes e bolseiros, aqueles que se utilizam de vias fluviais, e também para o Sul do Brasil pela rota dos tropeiros. É preciso somar a esse contexto o contato entre as línguas africanas, da época da escravidão e também depois com as línguas europeias, como o italiano, dentre outras e de outros continentes”, afirma.
Manoel Mourivaldo Santiago Almeida – Foto: CV Lattes
A criação de sotaques diversos tem relação histórica: como exemplo, a vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. “Por exemplo, é comum dizer que o C ou o S chiado no final de sílaba do falante carioca, como em casca, e que também está presente na maioria dos sotaques litorâneos do Sul ao Norte do Brasil, é devido à maior presença do português europeu, que também chia o C ou o S no mesmo contexto de final de sílaba, e é de prestígio. É um ingrediente sócio-histórico e cultural que ativa a formação e a constante variação em mudança de diferentes sotaques, dialetos ou variedades linguísticas em toda e qualquer língua, em todo e qualquer tempo, em todo e qualquer lugar”, acrescenta o professor da FFLCH.
Em alguns casos as variações morfológicas, como o uso de certas formas verbais ou pronominais, podem estar associadas a diferenças de sotaque. A morfologia trata de um modo geral do estudo da estrutura e formação das palavras. O professor Santiago Almeida exemplifica diferentes formas semânticas de estudar a variedade linguística. “Existem diferenças de diversas naturezas. Semântico lexical, que trata da diferença de sentido de uma palavra de região para região, como, por exemplo, mandioca, aipim, macaxeira, rapariga, moça. Morfossintática, que trata da diferença de construção de uma estrutura de uma frase ou de emprego de termos ou de concordância: tu vais, ele vai etc. Fonético-fonológico, que geralmente é a mais comentada e que trata da realização dos fonemas ou sons de uma língua. Por exemplo, os diferentes tipos de pronunciar um Re ou um R, como um retroflexo, porta, um aspirado ou um vibrante. E, como já foi dito, essas diferenças são reflexos da história social e cultural e dos contatos linguísticos de cada região ou lugar onde tais variações são percebidas”, comenta.
Apesar de ser um país extremamente diverso, o preconceito linguístico ainda é um fator existente no Brasil. O preconceito linguístico é a discriminação ou julgamento negativo que ocorre com base na maneira como uma pessoa fala, escreve ou utiliza a língua. Ele se manifesta quando se valoriza uma forma de falar ou escrever (geralmente a variante considerada “padrão” ou “culta”) em detrimento de outras variedades linguísticas, como dialetos regionais, sotaques ou formas de linguagem de grupos sociais específicos. O preconceito linguístico reflete desigualdades sociais e culturais, associando certas formas de falar a estereótipos de inferioridade, falta de educação ou até mesmo incapacidade.
“Eu diria que não é só no Brasil, no mundo todo existem preconceitos linguísticos. O preconceito linguístico ocorre, obviamente, a partir da percepção que cada um tem naturalmente de variedades ou dialetos e sotaques distintos do seu sotaque, da sua variedade. O preconceito linguístico ou estigma tem a ver com a identificação do falante de uma determinada região ou grupo social que, por algum motivo, é também estigmatizado pelo preconceituoso”, discorre o professor.
Esse tipo de preconceito ignora que as línguas são vivas e mudam conforme o contexto social e regional, e que a variação linguística é uma característica natural e legítima de qualquer idioma. A língua é parte essencial da identidade cultural de cada indivíduo e grupo social e discriminar alguém com base no seu modo de falar perpetua desigualdades históricas e sociais. Enfrentar esse preconceito é garantir o reconhecimento da diversidade linguística como uma riqueza cultural, além de assegurar que todos tenham igualdade de oportunidades, independentemente de sua forma de comunicar. A valorização das variantes linguísticas contribui para a construção de uma educação mais democrática e de um convívio social livre de discriminação.
Santiago conclui ressaltando a importância da diversidade. “É preciso reconhecer que, quando se discute a variedade de uma determinada língua, com o risco de lhe imprimir um único selo ou lhe caracterizar por apenas uma de suas multifaces, o que se pode destacar dentro do redemoinho da variação infinita de toda e qualquer língua são tendências ao maior ou menor grau de inclinação para uma ou outra de suas multifaces. Aí, por ser a língua produto da ação histórica, sociocultural de seus falantes, podemos rumar por caminhos distintos quão distinta seja essa ação histórica, social e cultural. Enfim, basta que o tema seja posto, livre de qualquer inclinação que o conduza deliberadamente para o estigma daquilo que, por natureza, é diverso”, finaliza.
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