Lançado no início de setembro, o e-book “Uma Vontade Enorme de Gritar” traz à luz uma coletânea de textos escritos por detentas da Cadeia Pública Feminina de Londrina – Divulgação
Lançado no início de setembro, o e-book “Uma Vontade Enorme de Gritar” traz à luz uma coletânea de textos escritos por detentas da Cadeia Pública Feminina de Londrina. Os escritos são resultados do Projeto “Escrita e Cura – Oficina de Criação Literária para Mulheres”, uma iniciativa patrocinada pelo Programa de Incentivo à Cultura da cidade de Londrina (PROMIC).
A responsável pela condução do projeto é a jornalista Laysa Barnabé Moraes, mestre e doutora em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).
O livro está disponível gratuitamente para download em seu perfil profissional no Instagram.
Jornalista lança e-book com textos escritos por detentas da Cadeia Pública de Londrina / Arquivo Pessoal
1. Como surgiu a ideia de criar o e-book?
O e-book nasce de um projeto que eu submeti ao PROMIC, o Programa de Incentivo à Cultura da cidade de Londrina. O projeto foca em oficinas de escrita para mulheres em quatro lugares: na cadeia pública, no assentamento Eli Vive, no abrigo Canto de Dália, que é um abrigo para mulheres vítimas de violência, coordenado pelo Centro de Referência de Atendimento à Mulher, e em uma biblioteca pública aberta ao público, aberta a mulheres que se interessassem. No projeto do PROMIC já constava a ideia do e-book. A minha ideia já era esse e-book, mas a atividade na Cadeia Pública de Londrina foi ganhando muito espaço e muita importância dentro do projeto. Eu gostei muito de trabalhar com as mulheres encarceradas. Foi uma turma muito receptiva, muito talentosa. No andamento do projeto eu entendi que, como a atuação na cadeia se destacou para mim pessoalmente e no projeto, resolvi fazer a seleção de escritos das mulheres só com os escritos da cadeia.
2. Quantas detentas participaram desse projeto e como foi o processo de coleta e seleção dos textos?
Foram 30 detentas, selecionadas pela equipe da cadeia. A seleção dos textos se deu de uma forma bem orgânica. Todos os dias da oficina – foram seis encontros no total – na cadeia pública feminina, eu passava propostas de escrita e no outro encontro elas me devolveram várias folhas com escritos. Tinha algumas coisas em verso, em prosa e alguns relatos autobiográficos. Eu li tudo isso e tentei fazer uma seleção que fizesse sentido, de textos que conversassem entre si, para que algum assunto não ficasse muito deslocado
Como a oficina de escrita era uma oficina que falava dessa ideia da cura que – eu explico melhor também lá no e-book – não é resolver um problema, não é eliminar alguma coisa, mas a cura diz respeito ao cuidado com as nossas histórias e com as histórias que a gente quer contar, independente do fato de elas serem reais ou fictícias. A cura diz sobre elaboração, sobre travessia, sobre processo criativo. Então eu tentei costurar os textos assim, guiados por esse olhar da oficina. Acredito que ficou uma seleção bem legal, mas muito desafiadora de ser feita, porque a verdade é que elas produziram textos muito interessantes, eu me emocionei muito, enfim, chorei muito lendo vários textos e as pessoas que têm lido o e-book também têm relatado essa emoção, porque elas realmente são muito talentosas.
3. Qual é a importância dessa iniciativa na perspectiva de reabilitação e ressocialização das detentas?
Eu até fico emocionada de falar o quanto eu acho importante. Eu sou doutora em literatura e isso é uma coisa que eu sempre defendi e acreditei. Eu acredito no poder da literatura, da escrita e da leitura, não só da escrita, mas também da leitura, como essa ferramenta humanizadora, que nos ensina empatia, que nos mostra o olhar do outro, que nos mostra a questão de alteridade, da gente conseguir se colocar no lugar do outro. Eu acho a literatura uma arte muito importante para que a gente consiga acessar coisas e visões de mundo que a gente não consegue acessar normalmente. Eu acredito muito, muito, muito nesse poder humanizador da literatura e acredito, sobretudo, que a literatura, ela não é e nem deveria ser uma arte para poucos.
Eu acredito que a literatura, a poesia e outros gêneros literários precisam ser para todo mundo e quem fala muito disso, que eu também cito no livro, é a escritora norte-americana Audre Lorde, já falecida. Ela tem um texto chamado “A Poesia Não É Um Luxo” em que ela vai dizer exatamente que, para as mulheres, a poesia é uma necessidade vital. É nisso que eu acredito. E eu acredito que as mulheres que fizeram a oficina conseguiram acessar isso de uma forma muito bonita. Claro que eu acho que existem limites. A literatura pode muita coisa, mas ela não pode tudo.
Eu também gosto muito de uma escritora portuguesa chamada Matilde Campilho. Ela vai dizer que a poesia não salva o mundo, mas salva o minuto, e eu acho que aqueles minutos em que a gente conseguiu falar para as mulheres ali que estavam, que estão encarceradas ou estavam encarceradas naquele momento, esses minutos foram salvos. Então eu acho que isso tem uma capacidade de ressocialização, uma capacidade de reabilitação para elas, que eu acho que ainda continua ecoando muito depois da oficina acabar. Para te dar só um exemplo, hoje mesmo eu recebi uma mensagem no meu Instagram profissional de uma ex-mulher da cadeia pública, uma ex-encarcerada, que já foi, já está livre agora, e ela veio me perguntar se eu tinha algum livro para doar para ela.
Me parece que essa semente foi lançada, às vezes ela germina, às vezes não, às vezes ela dá frutos maravilhosos e frondosos, às vezes vai ser um brotinho ali que precisa ser regado, mas eu acredito muito que essas sementes foram lançadas. Eu acho que isso pode ter efeitos muito modificadores na vida dessas mulheres, na forma como elas leem o mundo, na forma como elas leem a si mesmas, e por que não na forma como elas vão escrever as histórias delas para além das grades da cadeia?
4. Pode compartilhar alguns exemplos de assuntos e temas abordados nos textos das detentas? Existe algum texto em particular que teve um impacto significativo na equipe organizadora?
Os textos das detentas falam bastante de saudade, de traumas, de faltas, mas também existe ali, eu acho que isso é uma das coisas mais bonitas, uma certa esperança, de seguir, de continuar, apesar da solidão, apesar de tudo, de todos os limites. Então eu acho que a gente tem esses dois movimentos nos textos delas. Ao mesmo tempo que a gente tem a dor, a gente tem esse olhar que acredita que em algum momento isso pode ser diferente. Tem um texto lá para o final do e-book que é uma carta que uma delas escreveu para mim no final da oficina, e ela vai dizer uma coisa muito linda, que sempre me faz chorar, ela vai dizer que espera me encontrar em outros lugares, que não a cadeia, talvez uma fila de livraria. Acho que foi o texto que mais me emocionou, exatamente por essa possibilidade de, por meio da oficina, essa mulher que está ali encarcerada conseguir imaginar um outro futuro.
Então, isso me emocionou muito, a gente chorou no dia, porque elas leram. A gente teve um sarau final, então elas leram esses textos. Foi muito bonito. Esse texto pegou a gente em cheio. Mas são vários, todos eles mexem muito. Tenho recebido vários feedbacks das pessoas que estão lendo, extremamente emocionadas e tocadas pelos textos delas. E que são, eu ressalto, de muita qualidade. É literatura, no final das contas, essa literatura que não precisa ser um luxo.
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