(Foto: Ministério Público do Paraná)
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 30 anos nesta segunda-feira, 13 de julho, em um cenário inimaginável por quem participou de sua elaboração: a sociedade enfrenta uma pandemia mundial que dificulta a aplicação de direitos que já haviam sido assegurados normativamente para a população infantojuvenil. Os novos desafios impostos pela Covid-19 somam-se aos antigos, como a aplicação do princípio da prioridade absoluta, que significa que o gestor público, levando em consideração a situação peculiar de pessoa em desenvolvimento da criança e do adolescente, deve zelar pela primazia de seu atendimento nos serviços públicos, a preferência na formulação e execução de políticas públicas e, especialmente, a destinação privilegiada de recursos orçamentários.
Nesse cenário, o procurador-geral de Justiça, Gilberto Giacoia, ressalta que “embora ainda seja longo o caminho a ser percorrido para a plena efetivação do ECA, é indispensável reconhecer que a lei, nos últimos 30 anos, provocou transformações profundas no tratamento dispensado às meninas e aos meninos brasileiros, dando origem a um novo paradigma de proteção a essa parcela vulnerável da população.” Citando Nelson Mandela, ele afirma que “não há revelação mais aguçada da alma de uma sociedade do que a forma pela qual ela trata suas crianças”. Assim, “a materialização de todos os direitos e garantias previstos será um indicativo de que a população compreendeu plenamente a necessidade de firmar um compromisso ético com a defesa dos mais necessitados, especialmente de suas crianças e adolescentes”.
Para abordar os velhos e novos desafios e também as principais conquistas estatutárias, apresentamos durante a semana uma série de três textos, a partir manifestações de membros do Ministério Público do Paraná, desembargadores, integrantes de Conselhos (de Direitos e Tutelares) e advogados, todos com longa trajetória na defesa dos direitos de crianças e adolescentes.
Neste primeiro conteúdo, são destacadas as maiores conquistas que o ECA trouxe à população infantojuvenil. Confira:
Referência nacional quando o assunto é Estatuto da Criança e do Adolescente, por haver participado ativamente das discussões relacionadas à sua elaboração, o procurador de Justiça Olympio de Sá Sotto Maior Neto, que atualmente coordena o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos do MPPR, afirma que, a partir da Constituição Federal de 1988 e do ECA, as crianças e adolescentes passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direitos e não mais como meros objetos de intervenção da família, da sociedade e do Estado. “A lei detalhou aquilo que genericamente já havia sido indicado na Constituição, explicitando os direitos humanos relativos à população infantojuvenil, assim como os mecanismos para a sua materialização”, diz.
Presidente da Associação de Conselheiros e Ex-conselheiros Tutelares do Paraná, Luciano da Silva Inácio também destaca que, “com o Estatuto, crianças e adolescentes tiveram seus direitos humanos reconhecidos, sendo tratados no organograma jurídico e social como sujeitos de direitos”.
O desembargador Ruy Muggiati, supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do Paraná, ressalta como grande feito do ECA o princípio da prioridade absoluta para a infância e adolescência. “Isso já estava previsto na Constituição Federal, mas o Estatuto trouxe um plano de trabalho para que o princípio fosse efetivado”. Segundo ele, com a lei, começou-se um trabalho para que a sociedade tivesse uma nova compreensão dos problemas que envolvem a infância e a juventude no Brasil. “Isso é fundamental, porque se trata de uma questão cultural que perpassa todas as instituições, e que precisa ser mudada para que crianças e adolescentes realmente sejam prioridade absoluta.”
Ex-presidente da Associação dos Conselheiros e Ex-conselheiros Tutelares do Paraná, Márcio Rosa da Silva também elenca o princípio da prioridade absoluta como uma grande vitória. “Com o ECA, meninos e meninas passaram a ser tratados como personalidades de direitos, com garantia de prioridade absoluta na formulação das políticas públicas e na proteção integral, tendo o Ministério Público e conselheiros tutelares como protagonistas na garantia de cumprimento das leis.”
O desembargador Fernando Bodziak, presidente do Conselho de Supervisão dos Juízos da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Paraná, ressalta que o Estatuto instituiu um novo ramo da Justiça, o da Infância e da Juventude, com toda a estruturação que isso pressupõe. “Ele trouxe uma visão multidisciplinar para o processo, que incluiu, além de juízes e promotores, profissionais de várias áreas, como pedagogos, psicólogos e assistentes sociais, todos trabalhando juntos, em rede, para a proteção das crianças e adolescentes.”
Para o procurador Olympio, a Justiça da Infância e da Juventude tem papel fundamental, que inclui assegurar que as políticas da infância e da juventude recebam a destinação correta de recursos. “Não havendo pelo administrador público, espontaneamente, o cumprimento da política deliberada pelo Conselho dos Direitos, o Poder Judiciário, por ações propostas principalmente pelo Ministério Público, deve obrigar o cumprimento dos programas e ações definidos em benefício das crianças e adolescentes”. Isso porque, conforme decisões pacíficas dos Tribunais Superiores, a política deliberada pelos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente vincula o administrador, que, em razão do princípio constitucional da prioridade absoluta, é obrigado a canalizar os recursos necessários para a implementação dos programas e ações definidos pelos Conselhos de Direitos. Para ele, ao lado da expressa indicação dos direitos fundamentais da população infanto-juvenil (que são os próprios direitos humanos acrescidos de direitos específicos, decorrentes – ou necessários – a partir do reconhecimento de que as crianças e adolescentes devem ter proteção integral por estarem em peculiar fase de desenvolvimento), essa intervenção da Justiça da Infância e da Juventude, quando necessária, garantindo a concretização dos direitos, constitui pilastra básica do Estatuto.
O promotor de Justiça Júlio Ribeiro de Campos Neto, que atua na área da infância e adolescência na comarca de União da Vitória, concorda que a mudança de posição dos tribunais na forma de assegurar a realização de políticas públicas para crianças e adolescentes, ao determinar que o Poder Público cumpra tal agenda, é uma das alterações incorporadas pelo ECA que sempre precisa ser evidenciada.
A advogada Marta Marília Tonin, membro consultora da Comissão da Criança e do Adolescente da seção do Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil, cita como um grande progresso proporcionado pelo ECA o surgimento do Conselho dos Direitos (deliberando políticas públicas, com abrangência federal, estadual e municipal) e dos Conselhos Tutelares (que zelam pelo cumprimento dos direitos elencados no Livro I do ECA). Nesse contexto, ela também destaca a criação do Fundo da Infância e Adolescência, ligado aos Conselhos dos Direitos e que fomenta as políticas públicas em prol da garantia dos direitos básicos a partir da realidade de cada cidade e estado e do país.
Também para a presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Paraná, Angela Mendonça, o principal ganho trazido pela lei é a implantação dos Conselhos Tutelares, que permitiram algo inexistente até aquele período: a participação da comunidade, representada concretamente pelos conselheiros, na discussão e fiscalização da efetividade das políticas públicas, além do atendimento direto de meninos e meninas. Da mesma forma, ela destaca a implantação dos Conselhos dos Direitos nos âmbitos municipal, estadual e federal, como “a forma mais concreta e permanente de participação da sociedade civil acerca de qual tipo de política é prioritária e onde se devem fazer os aportes de recursos por parte dos governos nos três níveis”.
O procurador Olympio também fala do papel dos Conselhos dos Direitos, comentando que a lei trouxe absoluta modificação na política de atendimento à infância e à juventude, antes formulada por órgãos federais. “Avançou-se para uma proposta em que, com a participação das entidades da sociedade civil organizada, cada município, por meio dos Conselhos dos Direitos, faça diagnóstico da situação da infância e juventude e, partir daí, formule uma política consequente para o atendimento dos direitos das crianças e adolescentes.”
Alguns especialistas citam avanços pontuais e concretos resultantes da aplicação do Estatuto. O desembargador Ruy Muggiatti destaca o cuidado com os adolescentes que cometem atos infracionais. “Aqui no Paraná, como exemplo, o modelo instituído acabou com o problema da superlotação. Procura-se criar nos Centros de Socioeducação (Censes) um espaço de cuidado com o ser humano. Cada adolescente tem um plano de desenvolvimento específico, o que permite que eles possam se sentir protagonistas de sua história, com as naturais consequências positivas disso.” O resultado, segundo ele, é a baixa taxa de retorno aos Censes por adolescentes que praticam atos infracionais.
A advogada Marta Tonin elenca como exemplo concreto do sucesso do ECA o surgimento da lei que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamentando a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional. Ela comenta, porém, que nem todos os estados brasileiros têm a estrutura necessária para aplicação da medida socioeducativa da internação (indicada para adolescentes que cometem atos infracionais com violência ou grave ameaça) de um modo que assegure a proteção e a socialização dos mais jovens.
Além da lei que instituiu o Sinase, o desembargador Fernando Bodziak elenca como resultado concreto outros regramentos jurídicos de apoio à efetivação do ECA, como a Lei da Convivência Familiar e Comunitária, a Lei da Palmada, o Marco Legal da Primeira Infância e a lei que instituiu a escuta especializada e o depoimento especial para toda criança ou adolescente testemunha ou vítima de violência. “Toda lei precisa ser atualizada e complementada, porque a sociedade também vai se transformando, e a lei precisa caminhar de acordo com o seu tempo.”
Dentro da política de assistência, Angela Mendonça considera que foi muito representativa a implantação do Sistema Único de Assistência Social, que trouxe uma nova estratégia de acesso a serviços e cuidados antes não previstos – não havia métodos, nem um sistema articulado com dados, informações e fundamentos sociais e pedagógicos para o atendimento às famílias.
Marta Tonin acrescenta que o ECA ajudou a diminuir a mortalidade infantil e ainda deu a base para os programas de combate à exploração sexual e ao trabalho infantil.
Apresentados os principais avanços obtidos com a assinatura do Estatuto da Criança e do Adolescente, na próxima quarta-feira serão expostas as dificuldades enfrentadas para sua efetiva implementação.
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