– Um conto e uma ilustração de Giane Lessa –
Sempre duvidei se poderia ou deveria escrever sobre Ela. Tantos anos duvidando como quem decide tomar a decisão de transcender deste mundo. Não tenho nenhum motivo para explicar, concluir ou imaginar que chegou a hora de enfrentar essa escrita. Sempre me ocorreu que poderia sucumbir naquela voz, naquelas mãos se tentasse investir na memória, no tempo, naquela Outra que foi minha, a quem não nos cabe escolher, jamais sabemos de antemão quem é, de que tipo de destreza será capaz de te apunhalar o peito, de te negar o espaço conjunto, de te oferecer o olhar mais cúmplice, aquele que reconheceríamos com ou sem segurança, com ou sem medo, com ou sem a porta fechada. Todos os dias para Ela o mundo acabava e mergulhava no desencaixe de sua relação com o próprio mundo. O mundo acabava para nós e não sabíamos se ia amanhecer outra vez, mas amanhecia e nos fazia exercitar o sobressalto, a nossa cumplicidade dolorida, vasta, tão aguda e silenciosa, mesmo quando acompanhada pelos seus gritos; mesmo quando o corpo da criança estremecia diante daquele mundo que morria todos os dias, ou se apresentava na iminência de. Sem entendimento, sem razão, a criança só podia prever, medindo a turbulência, a fratura, o não que interrompia tudo. Ela era e não era, mas estava, faltava, e se remexia na abstração do seu próprio medo de estar, da sua falta de vontade de ser ali. Desconheço o grau de impunidade que me acompanhará a escrita, assim como desconhecia o grau de impunidade e o tamanho da minha culpa por todos os males pelos quais Ela passou. Também, até hoje não posso suspeitar como andava o seu relógio interior, totalmente alienada das necessidades que a criança tinha, por exemplo, de negar-se à menina, ou da raiva que a criança era capaz de lhe provocar, naquele habitar de portas fechadas que fazia com que as duas habitassem o mesmo infortúnio. Naquele espaço que a criança não reconhecia como seu, como um refúgio, era uma caverna que eventualmente poderia devolver o vento frio, empurrando-o para outro lugar. Sem sapatos, mesmo calçada e sem toda a explicação do mundo. Ela queria dançar, queria um romance de verdade e queria esquecer a bala, que por sorte não lhe atravessou seu corpo também de menina; esquecer que atrás da arma era seu pai quem mirava; esquecer os delírios herdados, único espaço possível, como seu nascimento não pôde evitar, pleno de desavisos. Ela, também criança assaltada, sem saber por que e quando o dia ia acabar, do mesmo modo como o mundo lhe acabava todos os dias. Disso Ela sabia, dos fins do mundo, do despreparo; do quanto tinha sido inoportuna. Esse era seu saber mais sólido, mais vigoroso, implacável. Esse saber ninguém lhe pôde roubar e esse seria seu legado. O legado que multiplicaria por três e distribuiria de forma desigual, com aproveitamentos desiguais, como virtude inabalável.
Giane Lessa é professora universitária em Foz do Iguaçu, Pr. Conto publicado na revista Escrita 43.
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