Albert Camus em Paris, França (1944) – Foto: Henri Cartier-Bresson/Fondation Henri Cartier-Bresson
. Do Jornal da USP / Texto: Luiz Prado / Arte: Joyce Tenório
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. Ao longo da trajetória da disciplina, três grandes tradições se destacaram na busca por essas respostas. Uma delas abordou o problema pela via histórico-social. Já outra adotou a perspectiva espiritual. Uma terceira, por sua vez, fez seu caminho a partir da interioridade, tateando soluções na individualidade do sujeito e em sua relação com o mundo.
. Essa última perspectiva começou a ganhar fôlego nos debates a partir do século 20, sobretudo com o diálogo entre filósofos e as escolas da psicologia. Martin Heidegger, Karl Jaspers e Jean-Paul Sartre são alguns dos nomes mais influentes dessa corrente, que prioriza reflexões a partir do que Jaspers chamou de situações-limite, como a angústia, a morte e o desespero.
. Dentro desse grupo, é possível situar Albert Camus (1913-1960), escritor, filósofo, dramaturgo e jornalista franco-argelino. Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1957, Camus é o autor de romances como O Estrangeiro e A Peste, ensaios como O Mito de Sísifo e o Homem Revoltado e peças de teatro como Calígula e Estado de Sítio.
. No conjunto de sua obra, interligando todos os gêneros em que atuou, é possível divisar uma contribuição para a antropologia filosófica, que se relaciona à perspectiva da interioridade, mas oferece reflexões originais. Esse é o ponto de partida de Humanae Absurdum: a Imagem do Humano na Obra de Albert Camus, livro de Carlos Eduardo Bernardo que será lançado neste sábado, dia 10, às 18 horas, em live transmitida pelo perfil Albert Camus Brasil na plataforma Instagram (@albertcamusbrasil).
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. Resultado da dissertação de mestrado de Bernardo, apresentada em 2020 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sob orientação do professor Franklin Leopoldo e Silva, o livro indica que a antropologia filosófica de Camus se estrutura a partir de duas linhas mestras. Uma delas é a consciência do absurdo. A outra é a revolta motivada por essa consciência. . Do início. O que seria essa absurdo? Segundo Bernardo, o absurdo em Camus corresponde à relação que o ser humano estabelece com o mundo. Para o autor franco-argelino, as pessoas são encaradas como entes de consciência, que olham para a realidade e exigem sua ordenação. Contudo, no confronto com o humano, o mundo recusa essa racionalização. . “Por mais que seja possível traduzir os fenômenos a partir de fórmulas, da lógica e através da matemática, de modo geral a natureza recusa ao humano a ordenação que a racionalidade exige”, explica Bernardo. Suas expectativas, projetos e tentativas de entendimento estão sempre se chocando com um mundo que resiste à compreensão, desvia projetos e frustra expectativas. . É esse embate entre a consciência humana e a recusa do mundo que Camus vai chamar de absurdo. “O absurdo não está nem na natureza nem no ser humano, mas nesse confronto”, afirma o pesquisador. “O absurdo é o sentimento dessa condição entre consciência e natureza.” Em outras palavras, é a constatação de que a natureza não se submete aos nossos planos e que não é possível mudar a realidade conforme todos os nossos desejos. . De acordo com Bernardo, muitos sistemas filosóficos reconhecem o absurdo, mas procuram ordená-lo para tentar resolvê-lo. Essa postura, chamada por Camus de “suicídio filosófico”, trata o absurdo como um ponto de chegada das reflexões e, na busca por solucioná-lo, acaba por trair o próprio pensamento, acolhendo respostas que escapam à consciência – como a vida eterna ou a existência de Deus. . A filosofia de Camus trata, ao contrário, o absurdo como o ponto de partida de suas considerações. A relação do ser humano com a natureza é absurda e nada pode ser feito para mudar isso. Dessa forma, reconhecendo o absurdo e a impossibilidade de dissolvê-lo, é preciso viver com ele, da melhor forma possível. É assim que Camus também apresenta seu argumento de rejeição ao suicídio. Sendo este uma tentativa de resolver o absurdo, é inválido justamente porque este é constitutivo da vida humana e, portanto, inextinguível. . E viver, apesar do absurdo, é a atitude de revolta que constitui a segunda parte da antropologia filosófica de Camus. Tendo a consciência da impossibilidade da comunhão do sujeito com o mundo, de que este atenda a seus anseios e possa se compreendido completamente, cabe ao ser humano não perder as esperanças e continuar seus esforços, mesmo diante do absurdo. . É a imagem do mito de Sísifo, que batiza uma das obras do pensador franco-argelino. O homem absurdo, aquele que tem consciência da relação absurda, age como o personagem da mitologia grega: continuamente sobe a pedra morro acima, sabendo que deverá recomeçar a tarefa e não há esperança de conclusão. Contudo, no momento em que inicia a descida montanha abaixo, esse homem consciente de seu destino vive. . “Viver é essa revolta. Fazer o que pode ser feito dentro dos limites, viver mesmo que pareça não haver razão para viver”, pontua Bernardo. “Na medida em que a pessoa toma consciência do absurdo e se revolta, ela pode ter a felicidade possível. Vivamos, apesar do absurdo.”
Ilustração de passagem da Divina Comédia, de Dante Alighieri, inspirada no mito de Sísifo – Imagem: Gustave Doré/Domínio público
. Para chegar a essa síntese das reflexões camusianas, Bernardo teve de enfrentar o desafio de lidar com um autor que não apresenta seu pensamento de maneira convencional à filosofia. Conforme explica, a obra de Camus não é estruturada como um grande sistema de pensamento, mas sim como um conjunto de problemas.
O pesquisador conta que filósofos sistemáticos partem de temas específicos, que se tornam princípios a partir dos quais o pensamento é estruturado, eliminando as contradições no caminho. É o caso do sistema hegeliano, por exemplo, organizado na chave da tese, antítese e síntese, que é a “dissolução do absurdo”, nas palavras de Bernardo. “O filósofo sistemático quer entregar um todo coerente, no qual a contradição é respondida”, explica.
. Camus, por sua vez, parte de problemas e prioriza a maneira como as perguntas colocadas se conectam, deixando as soluções em segundo plano. “As respostas até podem aparecer, mas nunca solucionam o problema do absurdo, da contradição, porque, em um certo sentido, a filosofia problemática não é uma questão de solução, mas de proposição de questões a se tratar”, diz o pesquisador.
. “A filosofia problemática mantém a tensão entre o problema e a aparente resposta”, continua Bernardo. “E isso movimenta o pensamento de pergunta em pergunta. Cada resposta gera novas perguntas e o sistema fica assim aberto e vai crescendo.”
. Essa “filosofia de problemas” não foi desenvolvida por Camus em volumosos manuais da disciplina, mas se constituiu na diversidade de escritos e gêneros abordados pelo autor, incluindo não apenas seus livros, mas artigos, entrevistas e conferências. Uma produção que para alguns coloca em xeque a própria caracterização de Camus como filósofo. Não que isso tenha sido um problema para o pensador franco-argelino: ele mesmo gostava de se considerar, acima de tudo, um artista.
. Para sua pesquisa, Bernardo conta que mobilizou praticamente todos os gêneros de escrita trabalhados por Camus, deixando de lado apenas os artigos jornalísticos. Dessa produção, o cerne está nos dois conjuntos de obras trípticas que o autor concebeu ainda jovem e conseguiu levar a público antes de morrer.
. Esse tríptico, conforme o próprio Camus apontou no início de sua carreira, se refere à reunião de um texto ensaístico, um romance e uma peça teatral, que serviriam de complemento e ilustração mútuos. O primeiro deles trata do absurdo, correspondendo às obras O Mito de Sísifo, O Estrangeiro e Calígula.
. “Meursault (protagonista de O Estrangeiro) é uma espécie de personagem conceitual que representa o absurdo, que vive a vida sem nenhum tipo de valor transcendente”, comenta Bernardo. “Ele tem relances de algum sentido no mundo, observa isso e pensa que é algo que lhe falta. Há uma dificuldade de valoração de sentido.”
. O segundo tríptico, ligado à revolta, é composto com o ensaio O Homem Revoltado, o romance A Peste e a peça Os Justos, podendo ser encaixada aí também Estado de Sítio, versão teatral de A Peste. “A Peste reverbera uma frase que Camus escreve em O Homem Revoltado: nós nos revoltamos, logo existimos”, destaca o pesquisador. “Ao fazer isso, ele aponta nosso pensamento para as personagens sitiadas e para a revolta contra a condição absurda da própria morte.”
. Camus pretendia ainda compor um terceiro tríptico, que seria dedicado ao amor, mas seu falecimento precoce, em decorrência de um acidente de carro, deixou apenas a obra inacabada O Primeiro Homem. Bernardo revela ainda que em algum momento esteve nos planos do autor escrever um tratado filosófico, mas a ideia não se concretizou.
. “Acredito que o abandono dessa tentativa de escrever um grande sistema filosófico se deu porque Camus entrou em um período de desconfiança aguda acerca da possibilidade de a razão conceber um sistema capaz de abarcar a realidade”, pondera o pesquisador.
. Bernardo acredita que essa desconfiança marca também um dos motivos de Camus rejeitar a associação com o existencialismo, corrente filosófica com o qual teve aproximações no início de suas atividades, mas que depois passou a criticar. As divergências com Jean-Paul Sartre compõem um dos capítulos dessa querela que o pesquisador relembra.
. Segundo Bernardo, tanto Camus quanto Sartre lidam com problemas semelhantes – o desespero, o absurdo, a questão da morte como situação-limite. Contudo, a compreensão do humano é muito diferente em suas obras. Sartre, em virtude de sua relação com a visão socialista, prioriza a ideia de revolução. Já Camus, que rompeu com o Partido Comunista Francês, via a revolução apenas como uma virada na qual os oprimidos se tornavam os novos opressores. Era a época na qual o regime stalinista surgia como materialidade e referência do socialismo – para críticos e entusiastas. Por isso, a opção pela revolta. “Na perspectiva de Camus, os revoltados se unem na solidariedade de quem se reconhece como oprimido”, assinala o pesquisador.
. Assim, compartilhando autores de referência como Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer, Fiódor Dostoiévski e Franz Kafka, travando batalhas com problemas filosóficos semelhantes e chegando ambos à ideia de absurdo, Camus e Sartre estavam ao mesmo tempo muito próximos e apartados, reflete Bernardo.
. “Na perspectiva do existencialismo sartreano, o absurdo é um ponto de chegada da filosofia e devemos achar alternativas políticas para lidar com ele. Já Camus entendia o absurdo como ponto de partida. Para Sartre, como a história é feita pelos humanos, pode ser mudada pelos humanos, uma ideia ainda ligada ao Iluminismo, a história como ápice e solução do problema. Camus discorda.”
. O teor de suas ideias e o rompimento com Sartre custaria a Camus um lugar quase marginal na filosofia, na análise de Bernardo. Um destino injusto, mas impulso para a pesquisa que resultou no livro agora publicado. “Acredito que a grandeza de seu pensamento não é valorizada”, comenta. “Essa visão camusiana de um pensamento comedido, que busca a justa medida, está em falta no mundo contemporâneo. É preciso viver na medida, sair dos extremos que acabam levando a posições muito beligerantes. Creio que o jeito de pensar de Camus é benéfico para podermos nos conciliar mais”, finaliza Bernardo.
A filosofia antropológica de Camus é uma forma de humanismo. Um humanismo não racionalista, calcado na concepção trágica do fenômeno humano, herdada dos gregos e refundida na sensibilidade existencial que rejeita quaisquer formas de escamotear a complexidade da condição humana.” (Carlos Eduardo Bernardo em Humanae Absurdum)
Humanae Absurdum: A Imagem do Humano na Obra de Albert Camus, de Carlos Eduardo Bernardo, Editora Appris, 129 páginas, R$ 44,00.
O livro será lançado em live neste sábado, dia 10, às 18 horas, no perfil Albert Camus Brasil da plataforma Instagram (@albertcamusbrasil).
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