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Aí me veio uma espécie de gênio da lâmpada só que concedendo apenas um desejo, e não três — o que a mim pareceu que de qualquer maneira eu sairia no lucro. O caso é que a última vez em que eu pisei na rua antes dessa quarentena foi numas comprinhas que eu fiz no hortifrúti aqui perto de casa. Não vou nem lembrar o que eu comprei, deixa eu ver, acho que atemoia, ou nirá, enfim, não lembro. Eu estava na fila para pagar e logo atrás de mim tinha um casal conversando. Fingi que conferia os itens que eu levava em minha cesta, mas foi só para ficar numa posição que me favorecesse naquela mania que as pessoas têm de escutar a conversa dos outros. Estava ali fazendo nada, sem desconfiar de que seria minha última vez andando livremente pela rua em, sei lá, dezoito meses? Se eu soubesse, deixaria a cesta com o nirá e a atemoia largada a um canto do hortifrúti e andaria até o calçadão só para sentir a brisa e o resto do sol daquele fim de tarde.
Percebi que os dois da fila nem se conheciam anteriormente, outra mania que as pessoas têm: conversar com estranhos numa fila de açougue, ou de mercado, de um hortifrúti. Geralmente começam falando do tempo, se está quente, se está frio, se está com cara de que logo mais vai cair uma chuva. Toró. Aqui no Rio, se o tempo está feio, a gente diz que está com cara de que vai cair um tremendo toró. Os dois da fila estranhamente pareciam quase que uma cópia um do outro, ambos com a pele um tantinho enrugada além da conta, um pouco transparente e um pouco rosa, os dois, os cabelos aloirados-falsos camuflando a branquitude da velhice, uns fofinhos. Ela dizia:
— Essa esquina tá ficando cada dia pior, alguém tem que tomar uma atitude.
Ao que ele respondeu:
— É verdade, alguém tem que fazer alguma coisa.
Do lado de dentro do hortifrúti a gente pode ver o que acontece do lado de fora. Por toda a extensão da bancada dos legumes, é possível escolher um pimentão do tipo roxo ou uma abóbora-do-Líbano e ao mesmo tempo acompanhar o movimento nas calçadas do Leblon, através de uma vidraça fumê adornada de adesivos divertidos que protege os produtos contra uma temperatura inadequada. Pude perceber que os dois da fila apontavam para um sujeito descalço sentado no chão, debaixo de uma árvore, rodeado por uns cacarecos e na companhia de um cachorro.
— Isso é um absurdo!
— Um absurdo!
— Ele tava aqui mesmo na semana passada, tenho certeza que era ele.
— Era sim, é só ver o cachorro. Bonito, né?
— Lindo! Parece cruzamento de Poodle com Cocker Spaniel, eu conheço de cachorro.
— Bonito mesmo. Tem porte, né, dignidade.
— Na Ataulfo de Paiva com a Antero de Quental tem uma outra que tá sempre com uma filha no colo, já viu?
— Filha nada! Duvido que é filha! Eles pegam criança de qualquer conhecido e vêm pro asfalto pra tentar passar imagem de família.
— Mais tarde eles dividem o lucro: uma fica ostentando a criatura toda suja de meleca e a mãe depois recebe o aluguel. É tudo trambiqueiro!
— E eu não sei? Tem gente que fica com pena, não pode ver criança na rua que vai logo tirando a carteira da bolsa.
— Depois reclama que tá cheio de pivete no bairro, fica incentivando…
Fiquei com aquelas palavras ribombando na minha cabeça. Algo aconteceu que eu não conseguia enxergar de forma clara toda cena a meu redor, um tipo de embaçado na vista me bateu fazendo com que os movimentos do entorno virassem nada mais do que borrões. Quer dizer que as pessoas em situação de rua estão ali simplesmente para aplicar os seus golpes! Que elas não são dignas de pena! É isso que aqueles dois da fila consideram absurdo? Uma dificuldade que eu tenho é de não responder de pronto nas vezes em que sou acossado por determinadas situações. É de não responder na mesma hora quando me perguntam algo para o quê não conheço uma resposta à altura, e mesmo se não é uma pergunta propriamente. É comum, quando acontecem certas coisas que me desestabilizam, que eu não saiba de que modo devo agir, e, um pouco por isso, acabo não agindo. A verdade é que no mais das vezes eu costumo congelar, não tomo atitude nenhuma. Admiro quando vejo um personagem nos filmes com a presença de espírito certeira para esculhambar quem merece, eu queria ser assim.
Chegou a minha vez no caixa, então eu paguei pelas compras e saí dali sem nem olhar para trás. Assim que entrei aqui no prédio ainda comentei com o porteiro da tarde sobre as desigualdades e a falta de noção que hoje em dia a gente vê por todo lado. Acabei lhe narrando o episódio do hortifrúti, tim-tim por tim-tim, e ele concordou comigo, claro, o Severino é um sujeito esclarecido, ele faz supletivo de noite no colégio estadual ali da praça, consegue sustentar uma conversa para além das fofocas que são tão comuns para quem trabalha na sua função.
Fiquei horas esperando a adrenalina baixar, escrevendo e reescrevendo um textão sobre o assunto, que depois postei nas minhas redes sociais. Primeiro só no Facebook, nos dias seguintes que criei outras versões desse meu texto para poder circular também nos meus perfis do Instagram e do Twitter, já que a repercussão logo de cara foi grande demais. Nenhuma de minhas postagens em todos os tempos havia gerado um interesse desses. É uma maravilha quando se percebe que se está do lado certo, quando a gente confirma que o campo progressista é o único possível para quem vive num país como o nosso.
Isso foi no comecinho do isolamento social, logo veio a recomendação do governo do estado para que fique todo mundo em casa.
E o post foi rendendo por dias, por semanas até. Os meus seguidores, além de deixarem curtidas, também comentavam, através de uns emojis carinhosos ou mesmo de textões-em-apoio. E eu respondi a cada um. Muita gente até compartilhou nas suas próprias redes. Influenciados pela minha indignação, escolheram replicar a mensagem, decidiram tomar posse dela. Uma energia sobrenatural, que só de vez em quando era abalada por algum comentário de hater, pessoas que só querem se aproveitar da popularidade alheia para ver se conseguem um mínimo destaque em suas existências. Mas com essa gente é fácil de lidar, basta excluir. A vida é muito curta para que a gente perca tempo dando ouvidos a robotizados, aqueles que não têm o que dizer, mas fazem a maior questão de parecer que opinam sobre temas importantes.
Passado algum tempo — alguns dias, não sei dizer exatamente quantos, nesse isolamento a gente perde um pouco a mão das coisas –, só depois de passado algum tempo que acabei me lembrando de um trechinho da conversa na fila do hortifrúti que antes eu não sei porque, mas eu tinha esquecido. O pedaço de conversa em que a mulher dizia:
— Na Ataulfo de Paiva com a Antero de Quental tem uma outra que tá sempre com uma filha no colo, já viu? Uma crioulona que fica no chão atravancando a passagem de quem entra na Caixa Econômica, segurando a macaquinha com uma mão e com a outra sacudindo moeda. Não que eu tenha preconceito…
E o homem da fila conversando com a mulher respondeu:
— Filha nada! Duvido que é filha! Eles pegam criança de qualquer conhecido e vêm pro asfalto pra tentar passar imagem de família. Sei qual é, sim, a crioulona não se dá ao trabalho de dizer coisa nenhuma, ela não diz bom-dia, boa-tarde, não diz nada, fica só sacudindo moedinha na mão suja, olhando no olho da gente, intimidando, sabe como? Eu também não sou racista, mas…
Não sei porque tinha esquecido dessa parte da conversa, sério mesmo, e fiquei horas pensando se eu deveria ou não postar o complemento. Podia parecer que era mentira. Conveniente que, justo quando esfria o termômetro de uma primeira postagem, eu me lembre de partes do papo que vão no sentido de aquecer a polêmica. Parece fake.
Durante o isolamento social, tenho lido muito sobre como as pessoas se comportam no que diz respeito às suas mídias. Fico dias inteiros, e noites inteiras, só acompanhando a lógica dos algoritmos. Pude assistir a muitas lives, inclusive com profissionais da psicologia, e a opinião maciça é sempre que uma exposição prolongada ao ambiente virtual pode até prejudicar a saúde, mas por outro lado abre espaço para campos mentais praticamente inexplorados. Existem mecanismos cerebrais que, sobretudo nos momentos de exceção como esse de agora, têm potencial para nos levar pelos caminhos do mistério. E a lógica do capitalismo explora isso muito bem, porque os algoritmos da internet funcionam nessa mesma frequência, a do consumo, de uma forma que a gente não chega nem a perceber. Parece mágica quando aparece no meio de um vídeo do Youtube a propaganda de um resort cinco estrelas numa praia em Japiúba, que você vem desejando há meses.
O que meus seguidores poderiam pensar vendo surgir em suas timelines novamente aquela cena que eu vivi naquela fila de hortifrúti no Leblon (só que agora turbinada por alguns elementos que antes, na primeira postagem, eu não tinha mencionado)? Talvez eles não pensariam nada, seguiriam no fluxo mecânico de likes e comments por mais um período de tempo, quem sabe até o fim do isolamento social? Talvez pensariam que não passa de invenção, de um truque só para sustentar um sucesso nas redes e, portanto, na vida.
Refletia sobre algumas questões quando encontrei, numa lojinha virtual de jogos, um aplicativo prometendo a realização de uma vontade especial do usuário. Uma única vontade. Comentei sobre essa minha descoberta num fórum anônimo de discussão na internet que eu frequento e, claro, todo mundo ali desconversou, me disseram que esse tipo de coisa não deve existir. Claro que não.
Por semanas, eu não fiz mais nada a não ser me concentrar na maneira correta de escrever um pedido certeiro. Era uma obsessão me colocar de volta exatamente lá naquela fila, à frente do casal que conversava, no hortifrúti, sobre as coisas desse nosso bairro. Achei uma forma de provar para todo mundo como aconteceu a tal conversa — de verdade —, me veio uma espécie de gênio da lâmpada só que concedendo apenas um desejo, e não três. O gênio segue um protocolo, mas os termos de uso me permitem pedir quase todas as coisas: um caminhão atopetado de barras de ouro, a morte de todos os meus inimigos, a paz mundial. Decidi voltar naquele dia específico, na hora exata, naquele lugar. E dessa vez eu vou tomar uma atitude, pode crer, não vou deixar barato não.
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