De que vale a minha memória se falha em guardar o que mais preciso? De que vale a boa vivência se mais tarde vira fio de um novelo enrolado que compõe aquele velho relicário que abro para romper em lágrimas? De que valo o mundo se o fim constantemente se aproxima, com a dor, a violência, a fome, a luz do farol do carro que atropela? Quero esquecimento. Quero a capacidade do desprendimento. Quero que as emoções se reduzam ao funil da dor pelas lembranças que me tornam assim, medrosa, com pavor dessa melodia flautada que ameaça encantar. Quero que você se esqueça. Do mundo lá fora, do capitalismo que nos engole, dos goles, da música, da nova ordem mundial, do supérfluo. Quero que se esqueça para lembrar do que é de fato fundamental. Que me apareça batendo à porta do meu apartamento, com um olhar confuso, desnorteado, procurando alguma resposta às perguntas que lhe fogem quando é preciso agir. Quero que assuma a responsabilidade de amar, de estar, de ser em minha pele, em meu cheiro, a memória cicatrizada que jamais doeu, pois nasceu da doçura do teu poema de versos tão dramáticos. Que você sempre seja o motivo da chegada da felicidade sem que a percepção e a consciência me atinjam. Que o fluxo natural da vida, da poesia, do encontro, esteja aqui, no gélido planeta, para nos aquecer frente ao horror. Que você sempre surpreenda, chegue quando não mais esperar, e traga consigo a alegria do esquecimento que só a capacidade de nossa memória é capaz de evocar… _____________________________ Sofia Alves é estudante de Letras na UFRJ, no Rio de Janeiro. O texto foi publicado originalmente na revista Escrita 48.
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