.
Filme e várias edições do livro Capitães da Areia: obra mostra violações dos direitos humanos – Fotos: Divulgação/Editoras
“Eles furtavam, brigavam nas ruas, xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por vezes feriam com navalhas ou punhal homens e polícias. Mas, no entanto, eram bons, uns eram amigos dos outros.” A obra modernista Capitães da Areia, publicada em 1937 pelo escritor baiano Jorge Amado, explora a vida de um grupo de garotos que crescem desamparados nas ruas de Salvador.
Os recursos discursivos usados pelo autor demonstram processos de violações dos direitos humanos de crianças e adolescentes, ficção que encontra ecos na realidade, conforme mostra a dissertação Política, Ideologia e Direitos Humanos em Capitães da Areia: uma abordagem semiótica.
O estudo está em fase de desenvolvimento por Leandro Lima Ribeiro no Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística Geral da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em São Paulo. Em entrevista ao Ciclo22, o pesquisador explicou como símbolos textuais são usados para estigmatizar os personagens no romance e a relação da obra com a realidade vivida no País.
No romance, os menores que vivem nas ruas são ignorados pelas pessoas que os cercam. Porém, ao mesmo tempo, os furtos e as violências cometidas por eles viram notícia no Jornal da Tarde, nome fictício do periódico que compõe o romance. Quando tais atos são noticiados, os adolescentes são colocados em evidência, não pelas faltas que vivem, como a ausência de cuidados básicos, mas pelas consequências dessas faltas. Essa contradição leva os personagens a uma dupla estigmatização social, conforme defendeu o pesquisador. Ao mesmo tempo em que são invisibilizados pela extrema pobreza e abandono que sofrem, são ultravisibilizados pelos atos violentos que resultam disso.
Leandro Lima Ribeiro, pesquisador da FFLCH USP – Foto: Arquivo pessoal
“Na construção da notícia, por exemplo, o Jornal da Tarde mobiliza diversas figuras como ‘assaltantes’, ‘bandidos’, ‘ladrões’, ‘larápios’, ‘indivíduos que infectam a nossa urbe’, etc., visando ultravisibilizar esses corpos, associá-los ao medo e ao terror”, analisou Ribeiro.
Fora da ficção, há um processo similar que ocorre com crianças e adolescentes que vivem pelas ruas no País. “Há uma retórica conservadora e intolerante no romance que é muito similar se a gente for pensar nos dias de hoje, com discurso favorável à redução da maioridade penal no Brasil”, afirmou o pesquisador.
Além da exclusão que os priva de direitos básicos, como saúde e educação, tem ainda o agravante das violências físicas e psicológicas cometidas pelo Estado na figura de policiais, demonstra o estudo.
Nesse sentido, a atuação estatal destacada no romance, além de oferecer recursos para analisar as violações de direitos, coloca em prova outra discussão: a ideia de que a identidade nacional foi formada a partir da celebração da mistura entre raças e classes sociais distintas.
Barroso defende que os personagens valorizados na obra de Jorge Amado, como população negra e periférica, mostram os conflitos em torno da aceitação de valores que estejam fora dos padrões sociais da burguesia e da branquitude, por exemplo.
“Em Capitães da Areia é tematizado o conflito de classes. Então há um rompimento com esse projeto de que fomos formados a partir de uma benignidade nacional”, disse o pesquisador.
Cena do filme “Capitães de Areia” – Foto: reprodução
Leandro Lima Ribeiro é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística do Departamento de Linguística da FFLCH. Sua dissertação é desenvolvida com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Seus objetivos com o estudo envolvem explorar um autor que, para ele, é pouco analisado dentro da Universidade. “Meu intuito é resgatar o Jorge Amado para os dias de hoje, analisando o passado para melhor entender o presente e o futuro, também tentando dialogar com alguns desafios do nosso tempo, sobretudo a questão da população de rua, que vem crescendo constantemente”, afirmou.
Sua dissertação Política, Ideologia e Direitos Humanos em Capitães da Areia: uma abordagem semiótica será defendida em dezembro de 2022.
Assine as notícias da Guatá e receba atualizações diárias.