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“fugir é a única maneira de permanecer vivo
Hoje eu vou ser sincero pela primeira vez. Não quero saber mais das minhas dissimulações. Depois dos 40 a gente não se emenda, mas também não suporta mais as idiossincrasias que a vida apresenta. Veja bem, o que somos: uma família perdida, de pais perdidos, de irmãos perdidos, de uma cidade que se perdeu no tempo. E o que me restou: tristes reminiscências e um forte e inapelável impulso de fugir para bem longe. Foi o que fiz.
Afinal, o quão insuportável foi a minha vida, carregada de inseguranças, marcada pela violência, ignorância, mágoas e por uma tamanha ingenuidade na qual continuo tropeçando e que vai me marcar indelével e inexoravelmente até o fim da vida. Sou um verdadeiro índio destroçado por aquilo que chamam de vida urbana.
E o que fez você? Meu porto seguro. A razão daquilo que representava racionalidade, beleza, inteligência, franqueza e oxigênio. Foi difícil e demais admitir que você também precisava de muletas. Que você precisou recorrer ao que não traduz nem um pouco a razão daquilo que somos, daquilo que pensamos. Onde você se perdeu? Você sabe que não consegue mais disfarçar no seu olhar, na sua voz, aquilo que você sabe muito bem que nunca fez muito sentindo. Isso nunca foi você.
Eu e você também não merecemos isso que sempre nos rodeou. Qual foi a sua turma? Qual foi a minha turma? Não os temos. Crescemos desgarrados como se fossemos dois anjos toscos, mal formados, procurando entender as espertezas da terra, com vergonha de uma mãe violenta, lavadeira, lutadora e de um pai ausente, apesar de bom, submisso, apesar de exemplar e doente, apesar de nunca entendê-lo e de ter se tomado minha maior referência. O que sabemos da nossa própria história? Talvez tenhamos convivido com a maior contadora de história da nossa vida. Dona de uma imaginação fértil, dotada de uma língua ferina, e de uma ferocidade e truculência pouco visto na nossa tenra idade. Quem foi afinal a nossa mãe? Cozinheira de um hotel ou prostituta de um bordel? Quem foi afinal o nosso pai? Outro bugre enganado pelos mais espertos? E por que ele teve que trocar de nome já bem moço? De quem ele queria se esconder já que havia nascido e se criado na sua própria terra? Talvez a gente nunca saiba e talvez até temos medo de algum dia saber.
Ah, são muitas as perguntas que ainda carrego e por isso essa minha inapelável fuga. Eu sempre me pergunto: como pude construir a vida assim? Como pude enganar tantas mulheres, como fui tão hedonista, como fui um pai tão displicente – o pior de todos. Como renego as famílias que formei, as famílias que eu cruzo, as famílias que eu vejo. Nada tão absurdo, abjeto, insano e vil. Eu simplesmente às renego e ponto final. Quero ficar no meu canto, de soslaio, taciturno.
Eu bem que queria continuar, mas é um conto curto e você saber que não sou tão assim, niilista. Ainda procuro aquele sopro de vida, mas é a última couraça que me resta, a última proteção da minha espécie. Já não enxergo direito, a minha memória é cada vez mais seletiva, e não suporto mais meus próprios fantasmas e o que essa vida me impôs.
Tenho que acabar por aqui, mas sei que ao cruzar o teu olhar, com meus olhos pequenos, você vai me entender. Não vamos precisar ser eloquentes ou balbuciar qualquer palavra. Nossos olhos vão se cruzar, não vamos precisar meias palavras, vai bastar o olhar, o olhar. Afinal, somos da mesma espécie. E eu só te escrevi para que você não se esqueça.
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