Conhecida como “Deusa Cientista” e nascida na Bahia, ela produz conteúdos para as redes sociais, ajudando a popularizar o conhecimento científico e mobilizando discussões sobre temas essenciais, como o combate às desigualdades e ao racismo. Mulher negra, Eller é formada em Química e mestre em Ensino da Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo (USP).
“Existe uma ancestralidade na ciência. Quando a gente começa a pesquisar, percebe que todos os povos de todos os lugares do mundo estavam fazendo ciência das suas formas, não só na Europa. A imagem de um cientista é construída historicamente como imagem de alguém confiável, alguém que é importante, que traz uma verdade, que pensa sobre algo. E a gente não vê, nos livros, nas propagandas, etc, esse cientista como pessoas como eu, mulheres negras”, destaca, ao programa Conversa Bem Viver, do BDF, no Dia da Consciência Negra.
Brasil de Fato: Como surgiu a ideia de ser uma influencer digital de ciência e o apelido Deusa Cientista?
Kananda Eller: Eu comecei a produzir conteúdo em 2020. Antes disso, era professora de Química e tinha finalizado minha graduação. Eu tinha pesquisado sobre como os professores de Química relacionavam Química e outros debates sociais, raciais, de gênero, principalmente racial.
Eu lembro que, durante a pandemia, a gente usou muito as redes sociais para se comunicar, para se relacionar. Era esse ponto também de resolutividade para o que as pessoas estavam procurando respostas. Eu lembro também que um dos primeiros casos de morte por Covid-19 foi de uma mulher negra que trabalhava na casa de uma mulher branca que contraiu a doença. Isso me fez acender essa chama de falar sobre ciência de uma maneira acessível para pessoas que muitas vezes não estavam tendo acesso àquela educação, uma saúde de qualidade para transformar as próprias vidas.
Eu me intitulei Deusa Cientista porque entendo que existe uma ancestralidade na ciência. A gente aprende que todos os conhecimentos do mundo começam na Europa. Mas, quando a gente começa a pesquisar, percebe que todos os povos de todos os lugares do mundo estavam pensando sobre o mundo, estavam fazendo ciência das suas formas, não necessariamente igual aos europeus. Na África, se produzia também esses conhecimentos e, para mim, ter acesso a esses saberes era importante para me fortalecer.
Então, a Deusa Cientista vem desse lugar, porque, no Egito Antigo, a ciência não era oposta à espiritualidade. Na verdade, a espiritualidade guiava também os conhecimentos científicos. Muitos conhecimentos que foram produzidos pelo Egito, Kemet, que a gente usa até hoje, vieram dessa filosofia. Eu venho dessa filosofia também, de respeitar quem eu sou, a minha história, a minha espiritualidade e a minha carreira científica.
Você entrou nas redes sociais por causa da onda de desinformação que se intensificou durante a pandemia?
Sim, primeiro, eu percebi a minha comunidade ao meu redor. Eu estava em Salvador no período da pandemia e muitas pessoas ficaram me questionando. Eu comecei a perceber o quanto de mundos de informações e desinformações estavam sendo fomentados, principalmente no período de pandemia e de eleições. O Brasil é um dos maiores países de consumo de conteúdo nas redes sociais e a gente tem formado muita opinião e tem baseado nossas ações a partir desses conteúdos nas redes.
Mas, muitas vezes, as pessoas não conseguem discriminar o que é verdadeiro e o que é falso ali dentro. É óbvio que o meu trabalho como criadora de conteúdo, como divulgadora científica, é combater esses tipos de desinformações, mas, ao mesmo tempo, existe toda uma estrutura de segurança que precisa existir dentro das plataformas para que essas informações não sejam disseminadas.
As desinformações pegam muitas pessoas pela familiaridade. São respostas simples para problemas complexos. O que a ciência se propõe a fazer é investigar a realidade para trazer uma verdade para aquela realidade. Não necessariamente essa verdade vai ser óbvia, vai ser familiar, ou vai ser de acordo com o que você está acostumado a ver há muito tempo na sua vida.
Muitas vezes, a ciência vem desconstruindo coisas que estão perdurando pela humanidade durante muito tempo. A gente vai aprendendo com o tempo e a gente vai construindo, produzindo esse conhecimento dentro da academia. A ciência está se movimentando o tempo todo. Algumas coisas já são consenso, mas a disseminação desse conhecimento é muito baixa.
Então, a internet é um lugar bom para a gente expandir essas narrativas, para aproximar as pessoas da ciência, desses conhecimentos que foram historicamente afastados das pessoas. Ao mesmo tempo, é um lugar bem difícil de estar. Estamos sempre pensando em como acabar com o fenômeno da desinformação, porque é um momento difícil. São vários fatores que interferem na desinformação.
Você também é afetada pelo discurso de ódio que tenta deslegitimar o papel de uma mulher negra nordestina como cientista?
Isso acontece desde sempre. Existe um movimento de descredibilizar o que eu estou falando, também do ponto de vista do alcance da informação. A gente fala muito sobre como o cientista foi construído. A imagem de um cientista é construída historicamente como imagem de alguém confiável, alguém que é importante, que traz uma verdade, que pensa sobre algo. E a gente não vê, nos livros, nas propagandas, etc, esse cientista como pessoas como eu, mulheres negras.
Então, as pessoas me questionam muito e eu tenho que provar mais que eu sei sobre uma coisa do que outros colegas que, às vezes, fazem um vídeo com muito menos informações, detalhes e referências.
Existe essa pressão de que as pessoas estão o tempo todo questionando e colocando em xeque a veracidade do que eu estou falando. Isso não significa que eu vou acertar sempre. Eu tenho, obviamente, uma estrutura, uma carreira. Trabalho com isso há cinco anos, já tenho uma experiência sobre o que eu estou fazendo, mas esse questionamento acontece.
Eu conheci uma amiga que fala sobre ginecologia e ela disse: “Eu fiz um vídeo sozinha e recebi muitos comentários de ódio. Depois, eu fiz o mesmo vídeo com um homem branco e não recebi nenhum comentário de ódio”.
As pessoas, às vezes, também focam muito na aparência física, para tentar tirar o foco do que está sendo falado. E nosso trabalho é justamente falar sobre conteúdos que vão impactar na vida das pessoas, aproximar a ciência das pessoas, não necessariamente falar sobre o meu padrão estético, sobre como eu sou.
Você produz conteúdos sobre assuntos que, a partir da química, dialogam diretamente com o cotidiano, mas também traz outros temas, como o comentário que você fez sobre a chacina no Rio de Janeiro. Quais são suas intenções quando amplia as discussões?
Eu não posso ser indiferente às desigualdades que acontecem comigo e com as pessoas ao meu redor. Quando descobriram o nêutron, várias discussões foram existindo dentro da área nuclear. Pesquisadores correram para usar essa energia nuclear para o tratamento contra o câncer, para identificar doenças, para diversas coisas. Em contrapartida, a gente teve também a criação da bomba atômica.
Então, a ciência não é neutra. A gente pode usar esse conhecimento para fazer coisas boas ou para promover bombas, que foi o que aconteceu nesse passado.
Sua relação com sua mãe e avó também foi importante para você se tornar cientista e influenciadora?
Sim. Eu odeio histórias de meritocracia, mas eu amo histórias. Minha avó já se foi. Ela dormiu dois dias em uma fila para que eu pudesse acessar uma escola de qualidade. Eu consegui. Eu estudei a minha vida toda em uma escola tecnicista. E minha mãe nunca fez faculdade, ela é motorista.
Eu lembro que teve uma época que eu queria ser dançarina, estava amando dançar e surgiu um curso de computação para fazer. Ela falou: “Larga a dança e vai fazer o curso de computação”. Na época, eu aceitei, mas fiquei um pouco em dúvida. Hoje em dia eu entendo porque ela fez essa escolha, muito por esse ponto de vista material. Ela já sabia intuitivamente que existiam profissões que socialmente a gente diz que são de mulheres ou de homens.
Tem pesquisas que mostram que as mulheres estão em muitas profissões associadas ao cuidado, enquanto os homens estão em profissões que são associadas à super inteligência. Quando eu falo que eu sou química, as pessoas dizem: “nossa, você deve ser muito inteligente”.
E não é sobre isso, é sobre caminhos, carreiras, o que você ama fazer, o que você quer, o que que você sente prazer de estar produzindo. A vida é uma só. Minha mãe sabia que existiam profissões que eram mais valorizadas e ela me incentivou a seguir essa carreira científica e acadêmica sem nem ter pisado na universidade.
A minha escolha é uma escolha não casual. Hoje, eu escolho muitas coisas na minha vida, mas a minha família também foi muito fundamental para isso e eu gosto desses caminhos que eu tenho seguido. Eu aprendo muito com elas, com as estratégias de vida delas, e hoje eu sou muito grata em poder retornar isso para as minhas avós, para minha mãe, para minha família.
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