Salas de aula no campus Porto Nacional da Universidade Federal do Tocantins (UFT) – Foto: Thiago Bastos/Dicom UFT
Uma pesquisa realizada na Faculdade de Educação (FE) da USP mostra como os professores da educação básica ainda têm deficiências para localizar o racismo no cerne das relações afetivas dentro da sala de aula. Na tese de doutorado intitulada Afetos da branquitude na formação de professores: por uma ética decolonizante, a educadora Daniela Campos parte de suas experiências como docente do curso de Licenciatura da Universidade Federal do Tocantins (UFT) para, num estudo autoetnográfico, investigar os instrumentos de mediação de competências socioemocionais para professores.
Misturando relatos pessoais, dados e teorias, Daniela expõe em sua pesquisa os processos de reconhecimento do racismo que permeiam suas próprias relações no campus. Além da narração de suas vivências na faculdade, a educadora também coletou testemunhos de sujeitos não brancos com os quais interage no campo da formação de professores, alunos e colegas de trabalho. Entre clássicos do pensamento psicológico, como Freud e Lacan, e autores do pensamento decolonial, como Franz Fanon, Lélia Gonzalez e Grada Kilomba, Daniela discute o conceito de afeto a partir de uma perspectiva crítica.
O estudo foi realizado no campus de Porto Nacional da UFT, um dos cinco campi da Universidade, sob orientação de Ana Paula Martinez Duboc, docente da FE.
Ao longo da pesquisa, a professora localizou dois fatores que contribuem para a alienação da branquitude. Um aspecto preocupante — tanto na UFT quanto nas demais universidades do Brasil — é a falta de docentes negros nas universidades; outro é a bibliografia dos cursos de licenciatura, formada majoritariamente por homens brancos e europeus.
Apenas 27,5% dos professores são naturais das regiões Norte e Nordeste; corpo docente é majoritariamente composto por profissionais do Sul e do Sudeste – Gráfico: Campos e Ferracini (2022)
Segundo a pesquisa de Daniela, as cotas para concursos públicos não têm se mostrado efetivas no corpo docente da UFT, ainda majoritariamente branco. – Gráfico: Campos e Ferracini (2022)
A proporção de alunos pretos e pardos no campus da UFT é muito semelhante ao perfil racial do Norte do País, onde 79,5% da população é composta por pretos e pardos, de acordo com o IBGE – Gráfico: Campos e Ferracini (2022)
“O campus da UFT tem histórico de entrada de grande porcentual de alunos pretos e indígenas”, conta Daniela, acrescentando que o número de alunos negros é proporcional à população negra em volta do campus da universidade. Neste ano de 2023, 391 vagas na UFT foram destinadas a pretos, pardos e indígenas. Enquanto a política de cotas para alunos tem sido eficiente, o quadro de professores mudou muito pouco desde 2012, segundo ela. Cerca de 75% dos docentes da UFT são brancos, de classe média e migrantes do Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Na avaliação da pesquisadora, a falta de professores negros na UFT reflete o fosso colonial existente entre professores e alunos das universidades do Norte do País.
Daniela Campos – Foto: Arquivo pessoal
A falta de representatividade no corpo docente é resultado de um descaso em relação à Lei 12.990 de 2014, que reserva 20% das vagas disputadas em concursos públicos federais para candidatos autodeclarados pretos ou pardos. A lei, contudo, tem uma brecha: as cotas somente são aplicadas em concursos com três vagas ou mais. Para burlar a medida, universidades federais do Brasil começaram a dividir processos seletivos, disponibilizando uma ou duas vagas por vez, para que não fossem aplicadas as cotas.
Entre 2014 e 2019, das 18 mil vagas abertas nessas instituições, pouco mais de 5% foram exclusivas para docentes negros, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Além da falta de professores não brancos, Daniela também localiza uma limitação na bibliografia trabalhada nos cursos de licenciatura. “Percebi que as teorias clássicas não estão servindo para os alunos lidarem com essas questões”, conta. Mas a pesquisadora não descarta completamente os pensadores europeus: “É interessante trazer possibilidade de diálogo entre essas ‘cosmopercepções’ indígenas e quilombolas e algumas teorias brancas”.
“Os corpos brancos têm que estar cada vez mais pressionados, especialmente aqueles que estão em lugar de poder dentro da universidade.” – Daniela Campos
Nos nove anos em que lecionou na UFT, Daniela teve somente um aluno indígena, um jovem quieto e sorridente chamado Jorge — que frequentava pouco as aulas. Por causa do excesso de faltas, Daniela reprovou Jorge na disciplina, para depois descobrir que, durante o período das aulas, ele participava com posição de destaque dos Jogos Mundiais Indígenas, um evento de suma importância cultural para os povos indígenas.
A partir de experiências de constrangimento e incômodo resultantes de interações na sala de aula, Daniela percebeu como sua branquitude a impedia de verdadeiramente reconhecer seus alunos negros e indígenas. “O incômodo precisa ser sentido na pele, e isso é proporcionado pela convivência com corpos e culturas diversas”, relata Daniela. Segundo ela, esse constrangimento é impulsionado pela presença de pessoas negras em espaços tipicamente ocupados por brancos — como as universidades.
Além da experiência, Daniela também se apoiou em um letramento racial para, enfim, compreender sua própria branquitude. “A bibliografia decolonial me ajuda a perceber que o que está no cerne das minhas afetações no campus é o racismo”, conta a professora. “Cada vez mais a gente vai ter que ser atravessado, não só teoricamente, como corporalmente, pelas cosmologias e epistemologias não brancas, para haver de fato transformação”, relata.
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