21 de novembro de 2024
Anuncie aqui
Sobre
Fale conosco
De Letra
Poesia
Literatura
Tirando de Letra
Livro
Contos e Crônicas
On-Line
Cultura Digital
Cinema
Vitrine
Oportunidade
Rádio
Cultura em Movimento
Música
Artes cênicas
Fotografia
Memória
Guatá
Bem Viver
Vida saudável
Ecologia
Ciência
Universidade
Geral
Fronteiras
Trinacional
Mulher
Movimentos Sociais
Antirracismo
Povos
Assista
PESQUISAR
Festa e paúra, conto de Bernardo Ajzenberg
Festa e paúra, conto de Bernardo Ajzenberg
26 de dezembro de 2023
Compartilhar
Texto reproduzido da edição 94 do jornal Cândido, publicada em maio de 2019.
Incrédulo em relação a tarô, búzios ou vidência, por sugestão da esposa tinha procurado anos antes uma sensitiva, pagando-lhe cinquenta reais para dela ouvir o anúncio de algo próximo do caos. Mas seria caos no casamento, disse a adivinha, a ameaça de turbulências ríspidas e dores, com risco alto, em paralelo, de impotência ou frieza — nada negativo nas finanças, trabalho ou negócios. O casamento, porém, seguiu bem, entre os mesmos picos e vales dos seus conhecidos, sem impotência ou frieza, razão pela qual esqueceu o assunto.
Tudo programado, mas podia não acontecer. Foi só quando Jorge bateu o martelo referente à venda do lote 619 que a conquista se consagrou. Assim que o jurado do Guinness confirmou o feito com uma piscadela, a festa meticulosamente planejada eclodiu. Funcionários soltaram balões, sorriram com efusão. A pequena plateia bateu palmas.
Do púlpito, brandindo o martelo de estimação salpicado de incrustações douradas — aquele que mais gostava de usar, indefectível como a batuta de um maestro e que julgava dar sorte —, ele exibiu o seu sorriso branco e largo, bateu de leve com a ferramenta na própria testa num gesto jocoso e soltou o grito selvagem: hip urra! Todos gritaram viva!
O objetivo fora definido meses antes. Estudou em detalhes os leilões mundo afora. Precisaria vender mais de 600 lotes em sete horas. Os auxiliares contataram o Guinness. Pagaram assessoria. Estavam todos preparados, física e mentalmente. A hora tinha chegado.
Apesar do ar-condicionado, Jorge sentiu um calor se empapar subitamente entre as pernas e gotas de suor escorrerem nas têmporas quando o olhar de um dos presentes alcançou o seu, e uma espécie de raio se desenhou no caminho povoado de gente que havia entre os dois. Buscou por um lenço nos bolsos, em vão. O homem não sorria; tampouco saudava nenhum conviva; nenhuma simpatia brotava dele; trazia uma pasta de couro sob o braço esquerdo; permanecia imóvel ao lado da porta, como se fosse, ele próprio, a porta, aberta, prestes a se fechar.
Jorge não a esperava para esse dia, mas sabia o motivo daquela presença, e a paúra ganhou forma: o salão teve suas dimensões diminuídas, carabinas, escopetas, espingardas, fuzis, garruchas, metralhadoras, pistolas, revólveres ou rifles, acoplados a espadas, facas, facões, estiletes ou canivetes, se ergueram diante dos seus olhos ameaçando soterrá-lo. A realidade se distorceu ainda mais ao som da comemoração no momento em que o representante do Guinness, de terno e gravata, subiu no estrado para lhe entregar o certificado, ambos posando conforme o ritual a encarar com solenidade o fotógrafo contratado para a ocasião.
O que o atormentava? Paciente à espera do pior diagnóstico? A certeza angustiante da impossibilidade de encarar com dignidade o inevitável caminho rumo à morte? Talvez tivesse sido mais prudencial de sua parte registrar um testamento vital, autorizando que na hora da decisão outros pudessem, não necessariamente antecipar a sua morte, mas ao menos garantir com lealdade que ela se desse de modo natural, sem mais retardamentos. Jamais passara pela sua cabeça, como agora, a possível iniciativa de constituir um inventário extrajudicial, ainda que não fossem muitos os herdeiros. Mas Jorge sabia que aquele sujeito não era médico nem tabelião.
O local ficou mais repleto ainda, o público continuava a aplaudir, o tempo pareceu se estagnar, funcionários sorriam como em câmera lenta; um bolo com velas surgiu e ele soprou, e foi então, no instante de beijar a esposa, que explodiram dentro do corpo os soluços violentos, espasmos bruscos, uma respiração logo irregular, tudo sem lágrimas, mas também sem controle nem engano; o sarcasmo antes explícito se dissipava no movimento de flores flutuantes enquanto mãos dúbias surgiam de todos os lados a parabenizá-lo.
Jorge sempre enfrentou sem pudores o medo da insignificância que o acompanhava desde pequeno, quando, para ganhar um jogo, já não hesitava em trapacear — tal como fazia de ofício aliás, a seu juízo, aquela sensitiva dos búzios. E o recorde mundial atingido agora, após décadas de pequenos, médios e grandes negócios escusos, consolidaria sua trajetória.
A partir de certa idade mudamos a nossa forma de mastigar e de deglutir as coisas — não só os alimentos. O festejado leiloeiro exultava triunfante, mas trêmulo de pavor: sabia não ter saída alguma para além das algemas que o aguardavam naqueles bolsos escuros e amplos, a poucos metros dali.
Bernardo Ajzenberg
nasceu em São Paulo (SP), em 1959. É escritor, tradutor e jornalista. Traduziu mais de 20 livros, especialmente do espanhol e do francês. Ficcionista, é autor de
Variações Goldman
(1998),
A gaiola de Faraday
(2002, prêmio de Ficção do Ano da Academia Brasileira de Letras),
Homens com mulheres
(2005, finalista do prêmio Jabuti) e
Olhos secos
(2009), entre outros. Foi coordenador executivo do Instituto Moreira Salles e ombudsman do jornal Folha de S.Paulo. Texto reproduzido do jornal Cândido, edição 94, de maio de 2019.
Compartilhar
Contos e Crônicas
ANTERIOR
Filosopoesia, poema de Rei Seely
PRÓXIMO
Ao menos 73% dos custos com demência estão com famílias, revela estudo
Leia mais
Contos e Crônicas
E Quilombo? Você sabe? , comentário de Valéria Rodrigues
14 de novembro de 2024
Contos e Crônicas
Amigo Disfarçado, Inimigo Dobrado – um texto do Prof. Caverna
12 de novembro de 2024
Contos e Crônicas
Uma Galinha, um conto de Clarice Lispector
27 de outubro de 2024
Últimos posts
Antirracismo
Pesquisa: seis em cada 10 negros ouvidos sofreram discriminação no último ano
20 de novembro de 2024
Antirracismo
Brasil
20 de novembro: Dia da Consciência Negra é feriado nacional pela primeira vez no Brasil
20 de novembro de 2024
Agenda
Música
Lorena Bellenzier apresenta concertos de violão em Foz e Sta Terezinha de Itaipu
20 de novembro de 2024
Agenda
Cinema
Quarta (20), Puerto Iguazú sedia o Festival de Cinema Latino-Americano 3 Margens
20 de novembro de 2024
Antirracismo
Preconceito e discriminação atingem 70% dos negros, aponta pesquisa
19 de novembro de 2024
Inclusão
Vida saudável
Caravana de Foz participa do Congresso Paranaense de Síndrome de Down
19 de novembro de 2024
Assine o nosso boletim!
Assine as notícias da Guatá e receba atualizações diárias.
INSCREVA-SE AGORA!