Encarando o desafio de mostrar que a arte e a educação podem e devem bailar no mesmo compasso, a edição 2023 do Festival de Dança de Londrina terminou no domingo (15) e cumpriu o que se propôs a fazer: espalhar sementes. Se, ao longo dos nove dias de espetáculos, as sementes propagadas nos palcos circulavam no campo das ideias e das emoções, invisíveis aos olhos, a metáfora foi materializada na frente do Teatro Ouro Verde na noite de encerramento. Num gesto simbólico e delicado, a organização do evento presenteou o público na saída do espetáculo argentino “T para T”, da Brenda Angiel Cia. de Danza Aérea, com dentes-de-leão colhidos pela cidade para que os presentes difundissem seus próprios grãos para um futuro mais promissor – referência ao conceito que guiou todo o material gráfico e curatorial do Festival.
Esta não foi a única surpresa preparada pela produção. Em homenagem ao Dia do Professor, comemorado em 15 de outubro, o Festival estendeu ao longo da fachada do Ouro Verde cartazes com a letra do “Samba da Utopia”, poema-canção de Jonathan Silva, utilizados no cenário do espetáculo “Ledores no Breu”, da Cia. do Tijolo, apresentado no dia 13, e que aborda a árdua missão dos educadores no Brasil. Numa espécie de cerimônia-manifesto em frente ao Teatro conduzido pelo curador e coordenador de comunicação Renato Forin Jr., foram lidos trechos de educadores e transmissores de saberes como Paulo Freire e do imortal da ABL Ailton Krenak.
Para contribuir com as reflexões sobre as relações entre arte e educação – tema do Festival 2023 – em um contexto de retirada das disciplinas estéticas das matrizes curriculares e de plataformização do ensino, foram chamados a discursar três educadores: Maria Evilma Alves Moreira, Secretária de Promoção de Igualdade Racial e Combate ao Racismo da APP-Sindicato; Kennedy Piau Ferreira, docente do Departamento de Artes Visuais da UEL; e Bruno César Garcia, da Secretaria de Organização da APP-Sindicato. Outros dois professores realizaram intervenções artísticas na festa de encerramento: Vanessa Deister, docente da UEM, apresentou a performance “Carpideira”; e Cláudio de Souza, professor da Escola Municipal de Dança, fechou os trabalhos com um solo de dança contemporânea. O ato reuniu centenas de pessoas no calçadão em frente ao Teatro Ouro Verde, principalmente educadores, estudantes das licenciaturas e entusiastas da escola, muitos dos quais vestiam camisetas com imagens e frases poéticas sobre o gesto de ensinar.
Alguns dos espetáculos desta edição abordaram as consequências do isolamento, da mortalidade e do mergulho virtual na pandemia. Foi o caso da montagem de encerramento, que levou ao palco e aos ares do teatro três bailarinos argentinos momentos antes da cerimônia de encerramento. As belas coreografias aéreas de “T para T” mostravam o mundo “virado do avesso” em que perpetramos e intercalavam dança com depoimentos pessoais dos artistas, como a perda da mãe da coreógrafa Brenda Angiel pela Covid-19, as memórias que não puderam ser concluídas e a dor de um bailarino trans em assumir sua identidade em uma peça que fala de relações amorosas. “Mercúrio”, apresentado dias antes, também foi um espetáculo que nasceu das profundas transformações originadas da pandemia e da necessidade urgente de reinventar as relações humanas, um sensível mergulho nas muitas formas do amor, traduzido nos movimentos precisos dos bailarinos Luiz Oliveira e Irupé Sarmiento, em coreografia de Henrique Rodovalho e com eco de palavras poéticas da escritora portuguesa Matilde Campilho.
Reflexões e emoções à flor da pele também marcaram outras noites desta maratona cultural, que ao longo de nove dias levou para o Teatro Ouro Verde e para a Divisão de Artes Cênicas / Casa de Cultura da UEL um público de aproximadamente 6 mil pessoas. O que dizer da visão de uma plateia assistindo extasiada e aplaudindo de pé as coreografias “Cinco” e “Bora!”, que compõem o programa “Humana Natureza”, do Ballet de Londrina, companhia anfitriã do Festival que está comemorando 30 anos de trabalho ininterrupto? Ou do encantamento ao final da apresentação da suíte de “Dom Quixote”, apresentada pela Curitiba Cia. de Dança, que trouxe ainda ao palco do Ouro Verde “Memória de Brinquedo”, para lembrar a todos da importância do lúdico em qualquer fase da vida?
O que dizer do misto de sensações provocadas pelo “Mestiço Florilégio” dos mestres Antonio Nóbrega e Rosane Almeida, que foram para o meio do público no espetáculo de estreia do Festival, arrancando lágrimas e risos com uma belíssima reunião de canções, momentos teatrais e peças coreográficas de ambos? Ou das gargalhadas de crianças e adultos ao acompanhar as trapalhadas das “Multidançarinas” Adelaide, Cora e Frida, da Grita Cia. de Palhaças?
As grandes asas de Carina – Para homenagear uma educadora-bailarina que fez história na cidade, o Festival de Dança foi palco também da estreia de “A Bênção do Grande Urubu”, um tributo ao legado de Carina Corte, que integrou o elenco do Ballet de Londrina, foi professora de dança e desenvolveu o projeto artístico-social Faces de Londrina. Ao longo de 13 anos, o projeto levou a dança para milhares de crianças e adolescentes de bairros periféricos da cidade. Mais uma vez, o Festival também foi vitrine para artistas locais, profissionais e amadores, filiados a diferentes modalidades da arte do movimento na mostra local “Dança Londrina”.
Em uma noite de inverno em plena primavera, o público lotou a Divisão de Artes Cênicas para prestigiar um dos mais importantes grupos de teatro da atualidade, a Cia. do Tijolo, de São Paulo, que apresentou pela primeira vez em Londrina a montagem “Ledores no Breu”, inspirada na obra do educador Paulo Freire, no texto “Confissão de Caboclo”, do poeta paraibano Zé da Luz, e em vários excertos de textos poéticos e canções brasileiras que tangem o ato de ensinar-aprender. Em sintonia com a linha curatorial do Festival deste ano, o espetáculo nos despertou para um crime que ainda assola o País em pleno 2023: o crime de não ter o direito ao letramento.
Com a palavra, os mestres – Ao longo destes nove dias, ao final de cada apresentação, educadores e educadoras presentes na plateia foram entrevistados (as) para o quadro “Mestres em movimento”, uma iniciativa da coordenação para contribuir com a reflexão sobre o papel da arte no processo de ensino-aprendizagem. Diariamente os vídeos foram postados nos canais oficiais do evento.
O Festival de Dança de Londrina termina, mais uma vez, com números que impressionam. “Foi um ano em que trabalhamos muito duro, duplicamos funções na equipe e negociamos arduamente com os artistas para fazermos acontecer um evento tão aguardado na agenda de Londrina. E um público numeroso, de cerca de seis mil pessoas, respondeu à altura. Tivemos um orçamento três vezes menor que o ano passado, mas em nenhum momento o Festival 2023 deixou a desejar na qualidade e potência dos espetáculos, na mobilização de reflexões de temas importantes para a sociedade, na celebração afetuosa e humana que construímos nesses dias. Isso nos deixa muito felizes, mas também deixa um alerta para se repensar valores de financiamento de eventos de artes cênicas, cuja especificidade da linguagem depende de orçamentos mais expressivos”, salienta Danieli Pereira, coordenadora geral e curadora do Festival.
Além das milhares de pessoas que se acomodaram nos teatros nos últimos dias para apreciarem e sentirem arte da melhor qualidade, outras centenas trabalharam duro nos bastidores para tudo ser exibido com perfeição nos palcos. A edição 2023 do evento teve a participação de 125 bailarinos. Entre técnicos e artistas de cena, 231 pessoas atuaram nos 10 espetáculos apresentados, em um esforço conjunto que se repete anualmente, há mais de duas décadas. Que venha 2024, porque como nos lembrou a multiartista Rosane Almeida em sua passagem pelo Festival, em entrevista coletiva, “no final das contas o ser humano gosta mesmo é de tocar, de dançar, de brincar, de falar. É disso que a gente gosta. É nesse lugar que a gente pode estar inteiro”.
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