Segundo o escritor francês Marcel Proust, “dentro de uma hora um romancista pode libertar todos os tipos de felicidade e infortúnio, que levaria anos de nossa vida normal para saber’[1]. “Ficção é a simulação de eus em interação”, é a afirmação que abre o artigo de revisão “Fiction: Simulation of Social Worlds” (Ficção: simulação do mundo social) de autoria de Keith Oatley, romancista anglo-canadense e professor emérito de psicologia cognitiva na Universidade de Toronto, baseado em cerca de 100 estudos acadêmicos e científicos.
Os estudos comprovam que os mesmos processos mentais utilizados durante a execução de uma ação na vida real são ativados quando lemos que a ação está sendo executada por uma personagem. Ler sobre fatos dá origem a ativações relacionadas à ação e ler literatura dá origem a simulações sobre o que poderia ter ocorrido. Estamos falando de IMAGINAÇÃO, e preparar os circuitos cerebrais para imaginar situações é uma base importante para a constituição de abertura, acolhimento e empatia diante da diversidade da vida.
Viver em agrupamentos sociais foi uma estratégia adaptativa exitosa para a sobrevivência da nossa espécia. Somos naturalmente programados para sermos sociais, viver em grupo. O desafio está em viver bem em sociedade, respeitando e dialogando com toda a diversidade à nossa volta, saber interagir com as pessoas, com quem concordamos e de quem discordamos. Uma teoria é que nossa consciência atua não apenas para tomarmos decisões no presente, mas também como preditora (simuladora) de comportamentos futuros. Podemos pensar as histórias de ficção como “pedaços de consciência externalizados” pelas(os) autoras(es), cujo acesso por meio da leitura tem o potencial de expansão da nossa consciência para melhorar nosso desempenho social.
Personagens e situações complexas que nem sempre encontramos no cotidiano. A complexidade das personagens literárias ajudam o(a) leitor(a) a ter ideias mais sofisticadas sobre as emoções e motivações de outras pessoas do que em histórias com personagens esteriotipados. Este resultado embasa a convicção de muitas(os) pesquisadoras(es) e especialistas que há um tempão afirmam que a qualidade do texto literário importa, e muito! Descobertas de pesquisas neurocognitivas revelam que a linguagem esteticamente bem trabalhada promove reflexões que afetam emocionalmente as(os) leitoras(es), gerando desdobramentos positivos para a cognição social;
O engajamento com leituras de ficção promove melhorias de empatia e teoria da mente. Como diz a neurocientista Suzana Herculano, “nascemos aptos para quase tudo e bons em quase nada”. Ou seja, é a educação e a experiência de vida desde sempre que serão nossas mestras na arte de aprender – ou não – a perceber os pensamentos e as intenções de outros seres humanos e a partir desta percepção atuar de forma a promover interações humanas cuidadosas e exitosas (graças ao desenvolvimento da habilidade nominada de teoria da mente). Exitosas no sentido de promover o máximo de bem e o mínimo de dano, lembrando que somos, também naturalmente, eficientes máquinas de sobrevivência. Daí a importância da literatura em nossa jornada formativa para acordar e fortalecer nossa humanidade;
Conhecer o outro em suas múltiplas, densas e intensas camadas de ser, se apresentar e estar no mundo é a fonte da emoção e da geração de empatia quando lemos. Estudos realizados por meio do teste reading the mind in the eyes(“lendo a mente nos olhos”), no qual as(os) participantes vêem imagem das regiões dos olhos e devem inferir o estado emocional das pessoa (alegria, raiva, medo etc), os melhores desempenhos são de leitoras(es) de literatura. A literatura nos permite saber “quem” e ir além do “o que”. Há muita potência na construção da empatia em circunstâncias nas quais o(a) leitor(a) sabe direto da boca da personagem como se sente. Penso que uma amostra dilacerante é o poema de F.pessoa, “Poema em linha reta”
“…NUNCA CONHECI QUEM TIVESSE LEVADO PORRADA TODOS OS MEUS CONHECIDOS TÊM SIDO CAMPEÕES EM TUDO E EU, TANTAS VEZES RELES, TANTAS VEZES PORCO, TANTAS VEZES VIL EU TANTAS VEZES IRRESPONDIVELMENTE PARASITA INDESCULPAVELMENTE SUJO…”
Um estudo interessante que trata a correlação entre leitura literária e impacto na redução do preconceito (no caso com imigrantes e homossexuais) chama-se “The greatest magic of Harry Potter: Reducing prejudice”, realizado com estudantes do ensino fundamental e médio. Na avaliação da equipe de pesquisa, o que conta em favor desse resultado é o fato da narrativa não trazer nenhuma situação com referência direta ao mundo real, abordando o preconceito de forma indireta: a primazia da fantasia amplia o potencial de engajamento e reduz uma possível reatividade. Taí um bom e direto recado contra a simplificação e uso funcionário da literatura, especialmente para crianças e jovens, tão em voga há muito, que vê a litertura como um manual de moral e cívica, barateando a literatura e negando o direito à fantasia e à fruição.
Não estou lançando a ideia de que a literatura deve ser ministrada como remédio, de acordo com a apatia ou patologia social de cada qual. A vida de cada um(a) de nós é envolta em muitas e diversas camadas de possibilidades e advsersidades. Literatura não é bóia salva vidas. Como dizia Faulkner[2]: é um fósforo riscado que nos permite perceber a escuridão, não a luz. E sabendo, podemos buscá-la com avidez.
Eu me baseio em muitos dados de pesquisas para compartilhar achados que revelam impactos significativos em nosso corpo (biologia) a partir do contato com contextos nos quais se inserem outros seres humanos (biografias). Mais leituras literárias de qualidade deveriam ser parte integrante da educação de qualidade do ser humano integral. Para que isso aconteça é profundamente necessário que docentes e todas(os) as(os) profissionais da educação e da biblioteconomia sejam muito bem formadas(os) para experenciar, pensar e implementar jornadas de leituras significativas e fundantes da nossa humanidade comum. E para servir leituras significativas à mão cheia, que existam bibliotecas abertas à comunidade Brasil adentro, que sejam promotoras de conversa animada entre leitoras(es).
Por trás de toda biografia há uma biologia. Eu entendo que é fundamental reconhecer e saber que há e como funciona o organismo vivo, o corpo, no qual enraizamos nossa história de vida, em permanente interação com o cérebro, que “evoluiu como um mecanismo que podia melhorar as tarefas de sentir, decidir e mover-se, e geri-las de modos cada vez mais eficazes e diferenciados[3]”, como diz o neurocientista português António Damásio. Saber para implementar em favor do amplo e pleno desenvolvimento de habilidades essenciais aos cuidados com todas as vidas do planeta. Uma utopia que passa, inequivocadamente, pela cultura escrita, na qual se insere a literatura. “O científico e o romântico imploram para ficar juntos”, Oliver Sacks [4]
[1] Em busca do tempo perdido, volume 1 [2] “O que a literatura faz é o mesmo que acender um fósforo no campo no meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor” [3] “E o cérebro criou o homem”, editora Cia das Letras, pág. 71, [4] “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”, editora Cia das Letras, pág.11
Da página Biblioo
Licença Atribuição – Não Comercial 4.0 da Creative Commons
Assine as notícias da Guatá e receba atualizações diárias.