– Uma crônica de Zé Beto Maciel –
“Eu vou fazer uma proposta que ele não poderá recusar” – O Poderoso Chefão
Vocês não sabem o quanto foi arrebatador assistir Cinema Paradiso de Giuseppe Tornatore, o que reforçou a paixão pelo cinema italiano, sua carpintaria e seus personagens. Era algo tão próximo de mim, da infância, das atitudes de família, um pouco do jeito dos moradores da cidade e de seus personas.
Muito antes de saber ler e escrever, coisa que aprendi fácil entre os seis e sete anos na escola Jorge Schmimelpfeng, o antigo Centro, eu já ia ao cinema. O Cine Star ficava ali na Avenida Brasil, atual loja Arapuã, entre as ruas Quintino Bocaiúva e Edmundo de Barros.
Uma aventura nas matinês de domingo. As irmãs, Marlena e Marely, tomavam conta de mim. Desde o primeiro filme, um faroeste, sobre índios que passavam fome no inverno e que lutavam contra os ‘mocinhos’, invadiam o forte e queimavam tudo, para uma criança, como eu, no fim do mundo, de quase tudo, o escuro, uma telona e a projeção em uma língua que sequer entendia qualquer palavra e as legendas que nem sabia o que podia significar, nem precisa dizer que o impacto foi muito grande.
Fiquei tão inebriado que somente anos depois, Woody Allen descreveu parte dessa sensação em A Rosa Púrpura de Cairo. Os primeiros filmes foram as primeiras viagens alucinantes sem qualquer tipo de aditivo alucinógeno que consumi, bem mais tarde, em quantidades avassaladoras. É uma sensação que perdi agora e, insistentemente procuro, a cada início da próxima sessão.
Eu só tinha esse tipo de viagem nos meus sonhos e pesadelos que desde a infância tomam contas da noite e até hoje marcam e intrigam.
As sessões do Cine Star eram diárias à noite, às 20h, não se tinham até os 70, as sessões duplas. O cinema era da propriedade da família Basso, dos irmãos Irineu e Vitório – filhos de Pedro Basso que construiu e inaugurou o cinema no final dos anos 50. Corrijam se estiver errado. Irineu era torcedor do Flamengo e Vitório do ABC, time do meu pai, do irmão Walmor e de toda família.
Num acordo com o Exército, 1º Batalhão de Fronteira, o cinema fazia uma sessão às quartas-feiras, às 15h, de entrada franqueada aos militares, principalmente aos praças, soldados, alcunhados de milicos na fronteira. Sorrateiramente, invadi duas sessões das quartas e foram as primeiras aulas gazeadas na escola. E foi, também com estupor, que num faroeste, dois pistoleiros bêbados se beijavam. Uma cena em outro western que me marcou e virou comentário de casa. “Eu assisti o filme, eles se beijam mesmo”, disse o irmão mais velho para a mãe Tereza e para as irmãs.
Meu pai e minha mãe, seo José, mais conhecido como Gilberto, e dona Tereza, que o nome mesmo é Ursulina, gostavam de cinema. E antes que a filharada toda criança, eram seis como numa escada, dessem maiores problemas, assistiam filmes como Mamãe Dolores, A Cabana de Pai Tomás, Madame X, os Mazzaropi, Chaplin (Carlitos) e Cantinflas e outras produções americanas que não entravam nas conversas da mãe e do pai.
Mamãe tinha uma predileção por Madame X e sempre repetia a história da mulher que casada é expulsa de casa porque o marido desconfiara que não era pai do seu filho. Anos mais tarde, acusada de assassinato, é defendida por um advogado, seu filho, que pensava que ela estaria morta. Um dramalhão que mexia com a emoção da mãe e dos filhos, todos pequenos.
O domingo da matinê no Cine Star era esperado com muita expectativa. Antes, um dos quatro irmãos passava em frente do cinema para ver o cartaz e as fotos do filme da sessão de domingo. Como já contei, minha casa ficava a quatro quadras do Cine Star e o maior inimigo para uma eventual falta à sessão era o tempo. A chuva estragava os planos porque íamos a pé e cidade só tinha a Avenida Brasil com asfalto ainda precário. As demais ruas eram de terras batidas e qualquer chuva era um barro só. Sujava desde os calçados até a roupa do domingo de cinema. Então, se chovia, não tinha cinema. Ordem da mãe e a mãe, como toda cidade conhecia, brava, não levava desaforo para casa. O que se fazia? Simpatia da mãe. O tempo, se fechado ou nublado, apanhava um machado de cortar lenha e fincava na terra para cortar o mau tempo. Funcionava? Eu acho que sim, na maioria das vezes.
Não perdia nenhuma sessão nem com o tempo feio. Meu pai que jogou no ABC era amigo dos Basso, principalmente de Vitório, e a entrada era franqueada para a família. O Walmor, mais velho, ia na frente com uma penca de revista em quadrinhos, umas trintas ou quarenta nas mãos e braços. E antes da sessão começar, trocava-as com outros garotos. Tex, Tarzan, Fantasma, Mandrake, Keruak e quadrinhos de western, as revistas dos rapazes. As mocinhas trocavam revistas de fotonovelas e o Sétimo Céu. Eram revistas compradas, na maioria das vezes, na banca do Fumante, duas quadras acima do Cine Star. Mais tarde que vieram as revistas da Disney, Bolinha, Luluzinha, Pinduca, Brotoeja, Brasinha e Bolota.
A irmã Marely tinha uma predileção em enganar. Disse, e eu acreditei, que dependendo dos rugidos leão da Metro, podia-se saber no início da sessão se o filme seria ótimo, bom ou ruim. Uma rugida, o filme ruim, duas rugidas, o filme bom, três rugidas, não se devia desgrudar os olhos da tela, o filme seria ótimo. É claro que leão sempre rugia duas vezes, nunca uma vez ou três. Sempre me conformei de assistir filmes bons orientados pela esperteza e inteligência da minha irmã.
Eu assisti de tudo no Cine Star, de tudo o consigo lembrar, principalmente os épicos das produções de Hollywood e alguns filmes italianos. Tem um filme e uma cena dentro do cinema que sempre vem à memória. Sempre, tudo me parece em preto e branco, e o filme era em preto e branco. Gianni Morandi, um cantor italiano, jovem, que arrebatava o coração das mocinhas e a atitude de bom moço dos rapazes. ‘No son degno di te’ e ‘se non avessi più te’ embalou o romance, o namoro e a paquera de muita gente no final nos anos 60, quando os filmes de Morandi estrearam nas telas do Cine Star. Para mim, todo aquele alvoroço no cinema, de garotos, garotas, moças e rapazes, está na memória igual ao filme do cantor italiano: em preto e branco.
Depois de cada sessão, a aventura de assistir aos filmes tomava conta das brincadeiras solitárias da infância. Cantava as músicas, imitava os cowboys, matava os índios, corria e fazia cenas imaginárias onde eu, é claro, era o diretor e o astro principal. Histórias, filmes, roteiros e cenas nunca saíram da cabeça e os carregos – fora aqueles que o tempo deletou pelos excessos da vida – comigo até hoje.
O Cine Star é um cinema imponente para a época. Uma entrada principal e uma saída, uma porta lateral – que dava travessa da propriedade dos Basso – nunca usada. A bilheteria ficava a direita, de um hall de entrada, antes de uma pequena escadaria com seis, sete degraus. No hall, os cartazes dos filmes em exibição e os que estavam por vir. O salão amplo, uns 500 lugares e as cadeiras de madeira Móveis Cimo. À frente da telona, de 35 mm, um pequeno palco, também nunca usado. Em uma das laterais se acesso o piso superior para mais 100 cadeiras. Esse espaço era procurado por casais mais empolgados. Eu nunca soube e nem procurei saber sobre os projecionistas. Acho que eram filhos dos Basso. Frequentei o Cine Star até sua decadência, no final dos anos 70, quando só passava filme de lutas marciais (os kung fu) e de pornografia.
“Você ainda vai no Cine Star? Você tem que conhecer o Cine Iguaçu, que é muito melhor. Não tem nem comparação” – disse o Valdir, filho da Dona Negra e seo Jorge. Resisti o que pude até deixar levar e descobrir o cinema três quadras acima, na rua Rio Branco. Minha paixão pelo cinema se intensificou com os melhores filmes dos anos 70, 80 e 90.
O primeiro contato com o filme mais visto na vida se deu com a professora de português, Elci Holler, no colégio Bartolomeu Mitre. A professora Elci era muito bonita, parecia ruiva, é a lembrança que tenho dela e assistiu à sessão no Cine Iguaçu do “Poderoso Chefão”. O ano, se não engano, é 1975 e a sessão foi registrada no jornal – não lembro o nome – e virou notícias na Rádio Cultura e falatório na cidade. Tudo se transcorria bem na exibição até a morte de Sony, filho de Dom Corleone, crivado por várias rajadas de metralhadores num pedágio. O som foi tão alto que placas do teto, feito de gesso, se desprenderam e caíram sobre a plateia na ala esquerda da sala principal de projeção. O saldo foi um homem ferido na cabeça, escoriações leves, e alguns estilhaços das placas nos braços de uma mulher. Sessão interrompida, tumulto serenado, o filme prosseguiu em cartaz por mais duas semanas.
Eu não assisti Poderoso Chefão no Cine Iguaçu e mãe também proibiu de assistir Dio Como Te Amo, ou filme italiano, mas assisti outro dois filmes marcantes: Apocalipse Now que comentei com o Tamires de Souza Filho, amigo na época, que não tinha entendido muito. E Laranja Mecânica, de Kubrick, com bolinhas pretas da censura perseguindo os genitais dos personagens. A lista de clássico é extensa e inclui Blade Runner, Scarface, Taxi Driver, Expresso de Meia Noite, Um Estranho no Ninho, Alien, Um Dia de Cão. Acreditem, no Cine Iguaçu passaram O Império dos Sentidos e Calígula em sessões aos domingos, quando estreavam os melhores filmes.
Minha pré e adolescência eram voltadas ao cinema aos domingos. As sessões às 14h e 16h lotavam completamente. Á noite, as sessões eram às 20h e 22h. Não precisava sair do cinema entre uma sessão e ou outra e às vezes, conforme a programação e quantidade de filmes, as sessões eram duplas com entrada única. A primeira azaração e o primeiro beijo, com certeza, foram entre uma sessão e outra.
Ao lado do cinema, ou no subsolo, do hotel Salvatti, funcionava a disco salvatti com uma matinê das 15h às 19h. O programa de domingo estava completo: discoteca e cinema, mas meu foco principal eram os filmes, as fitas sempre tomaram conta da vida. Minhas viagens a Curitiba e outros centros se resumiam a pegar um cinema, um show e, às vezes, uma peça de teatro. Assisti Hair, Woodstock e The Wall em sessões da meia noite. E Laurence da Arábia na Cinemateca de Curitiba.
No meio da década de 80, um novo aparelho doméstico começou a decretar falência das salas de cinema. O vídeo cassete, vendido no Paraguai, virou febre nacional e as locadoras de filme se espalharam pela cidade e pelo resto do País. A sessão do cinema se tornou muito segmentada. Geralmente você reunia seus amigos e depois de um bom baseado, a sessão estava garantida. O vídeo cassete qualificou as sessões de filme com os clássicos do clássicos – Cidadão Kane – e toda filmografia italiana, francesa, inglesa, russa e polonesa. Também foi o contato mais direto com a produção nacional esquecida e, erroneamente, desqualificada.
Mesmo assim, gostava – e ainda gosto – do escurinho do cinema e acompanhei a tentativa de Vilmar Hermmann, projecionista do Cine Iguaçu, de retomar o público ao cinema. Um local, com mais de dois mil lugares em dois pisos também sucumbiu como outras salas ao poder das igrejas evangélicas. Lembro que o último filme que assisti no Iguaçu foi Desperado – A Balada de um Pistoleiro – de Roberto Rodriguez. Um filme produzido por US$ 7 mil e que arrecadou milhares de dólares. Rodriguez é amigo de Quentin Tarantino que produziu e dirigiu Cães de Aluguel e depois Pulp Fiction. Tarantino, também um cinéfilo, fez um dos melhores filmes dos anos 90.
Hoje confesso, vou pouco ao cinema, mais pouco do que gostaria da ir. Torço o nariz para os blockbusters e as chamadas franquias com uma série de sequências, mas como disse, o cinema e os filmes me salvaram, depois veio a escola, a literatura e os amores e as outras perdições. O Cine Star e o Cine Iguaçu estão aqui, em cada canto da memória, e dos filmes que me envolveram e tramaram em favor da minha vida.
Zé Beto Maciel, iguaçuense, é jornalista em Curitiba. Texto a ser publicado na Escrita 41.
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