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A Funcart, instituição de artes cênicas londrinense, lançou no instagram vídeo com a leitura dramática do conto de Bertolt Brecht “Se os tubarões fossem homens”, um trabalho de estudantes de teatro daquela instituição. O vídeo tem a produção e direção dos professores José Henrique e Cláudio Rodrigues e coordenação de Sílvio Ribeiro. Para assistir, clique, aqui.
A leitura procura trazer à cena um pouco do espírito instigante, crítico e irônico do autor que não escondia seu descontentamento com o sistema econômico e político.
Durante as aulas online, os alunos puderam conhecer um pouco mais da obra de Bertolt Brecht. Também assistiram à palestra com o jornalista e produtor cultural Waldir Grandini, um estudioso da obra brechtiana.
As gravações da leitura de cada trecho do conto foram realizadas individualmente, seguindo todas as normas de distanciamento. É o teatro resistindo à pandemia!
Abaixo, publicamos um comentário do jornalista Waldir Grandini sobre a obra de Bertolt Brecht, reproduzido do site Iluminuras.
Bertolt Brecht, autor de “Se os tubarões fossem homens”
. A Turma Vespertina de Teatro da Funcart acaba de lançar uma leitura cênica do texto de Bertolt Brecht, “Se os tubarões fossem homens”, com produção e direção dos professores Cláudio Rodrigues e José Henrique. O resultado ficou limpo, cuidadoso e correspondendo às expectativas de uma leitura brechtiana, onde as coisas devem ser reveladas, e não incorporadas, pelo ator. O trabalho de olhar e voz cuidou disso muito bem.
Além da felicidade de ter esse trabalho circulando, fico contente por ter colaborado com ele, com uma vídeo-palestra dirigida ao grupo sobre Brecht, a contemporaneidade de sua obra e sua estética. Embalado por estas felicidades, reuni nesse artigo um pouco da história do texto “Se os tubarões fossem homens” e de sua importância na estética brechtiana.
. Acompanhando Brecht
“Se os tubarões fossem homens” é um texto escrito por Bertolt Brecht na década de 50, na maturidade de sua vida criativa. Mas é também parte de um conjunto de textos que o dramaturgo e poeta escreveu ao longo de 30 anos, desde 1926 até 1956, quando se foi, publicado como “Histórias do Sr. Keuner”. Fez parte de quase toda vida criativa de Brecht, o peculiar personagem.
Desses escritos onde o Sr. Keuner é o personagem protagonista, 44 foram publicados com Brecht em vida. Depois foram reunidos nas “Histórias do Sr. Keuner”, publicadas sob este título, apenas postumamente. Em 1971 foram reunidas o total de 87 histórias que compõem a publicação, após mais 30 histórias serem encontradas no Arquivo Bretolt Brecht, em Berlim. A Editora 34 publicou em 2006 a tradução que Paulo Cesar de Souza fez das “Histórias…”. É excelente!
Para Brecht, o Sr. keuner era uma voz filosófica e estética, com que pensava e se dirigia ao mundo. Personagem sempre envolvido em situações que se tornavam peculiares e interessantes, por abrirem ângulos inusitados de visão.
“keuner” vem do grego Koinós, “que diz respeito a todos”, o que é apropriado, porque tem destino popular no sentido que o crítico Roland Barthes atribui a Brecht, o de ter “um conteúdo profundo, que só pode ser entendido pelo povo”, por comunhão de destino com despertar da consciência dos oprimidos.
Brecht definia o Sr. Keuner como “o pensador”, ou “aquele que pensa”. Ele participava, da experimentação didática do dramturgo como questionador. Ingrid Koudela, uma das maiores pesquisadoras brasileiras em torno do teatro e da pedagogia na obra brechtiana, diz que As histórias do Sr. Keuner “são um indício de como trabalhar com posturas”, ou seja, são pensamentos para refletir e balizar atitudes, não para uma degustação literária que se contente em si mesma.
. O real invadindo a fábula e a parábola
A fábula “Se os tubarões fossem homens”, funciona como uma alegoria sobre nosso tempo e o “modo capitalista” de civilização. Propõe como que um despertar sobre isso, ao refletir sobre a organização social e institucional do mundo.
Nas histórias escritas por Brecht, pouco é dito sobre o Sr. keuner em sentido biográfico, mas entre as poucas coisas, uma significativa é que ele tem uma sobrinha bem criança. Essa criança é, no contexto das “Histórias…” e no texto “Se os tubarões fossem homens” especificamente, a figura que interroga. Ela quer saber, deseja compreender, como o mundo seria se – como diz o título -, os tubarões fossem homens.
O texto é fábula e parábola. Como fábula – analogia, envolvendo o mundo animal e o mundo humano – o texto de Brecht é de uma esperteza só. Aproveita a construção cultural onde os tubarões aparecem como destruidores, violentos, perigosos. A sobrinha do Sr. keuner lhe pergunta, no início da história: “Se os tubarões fossem homens, será que eles seriam mais gentis com os peixinhos?”, induzindo o senso comum a esperar que os homens pudessem redimir o mundo da maldade dos tubarões.
Qual o que… Quando se espera do Sr. Keuner uma resposta onde o mundo humano fosse idealizado como de compaixão, é justamente o contrário que vem: no interesse dos tubarões, se fossem homens, os gestos de preocupação, educação, afeto, inclusão, organização institucional, estabelecimento de hierarquias, tudo se mostra e seria um cultivo dos peixinhos como alimento do tubaronato, o que termina com a seguinte frase: “Em suma, haveria uma civilização no mar, se os tubarões fossem homens.”
Como parábola, a narrativa recusa o senso comum, abrindo a visão. Na comparação entre os humanos e tubarões, a “civilização” é desnudada. Afastada da gentileza desinteressada, ela é colocada diante da própria realidade, não diante do que pensa de si mesma: educa-se, garante-se um certo bem-estar, há uma determinada preocupação, mas manter a desigualdade e a submissão está permeando tudo.
“Se os tubarões fossem homens é uma parábola dialética, uma parábola ao avesso, quase uma anti-parábola: ao invés de contar uma história para fechar com uma moral, ela adentra a realidade histórica dentro da fábula, para mostrar outro ângulo do real: o que se revela é o mundo real dos homens, não o mundo imaginário em torno dos tubarões.
O filósofo Leandro Konder (1936-2014) escreveu sobre Brecht e sua literatura que ela compunha uma dialética para que as pessoas percebessem a dureza do quadro social, sem embelezamentos da realidade. “Por que os de ‘baixo’ se acomodam com tanta docilidade às normas estabelecidas pelos de ‘cima’?” Essa é, segundo Konder, a pergunta que Brecht lança em suas criações, para que, sendo respondida, a ela corresponda à consciência que transforma.
. “Se os tubarões…” para crianças .
Outra boa notícia, editorialmente falando, foi o lançamento da fábula no Brasil em 2018 como uma publicação dirigida ao universo da infância, pela editora Olho de Vidro. É uma edição muito bem feita, com tradução da jornalista, escritora e tradutora Christiane Röhrig e ilustrações de cair o queixo de Nelson Cruz, pelo traço, pela cor e pelo humor irônico muito apropriados ao texto brechtiano.
Ter “Se os tubarões fossem homens” como um bom texto para crianças é fundamental. Já é hora de pensar que a literatura infantil não é necessariamente cor de rosa, ou que deve poupar das dores, ou amaciá-las.
Em 1934, Brecht escreveu um panfleto para ser distribuído na Alemanha que estava sob o nazismo, “As cinco dificuldades no escrever a verdade”. Ele foi publicado em 1935 em Paris, Basiléia e Praga. Para que pudesse entrar e ser distribuído clandestinamente na Alemanha hitlerista, Brecht lhe deu o título falso de “Guia prático de primeiros socorros”. De uma certa forma, não deixa de ser. É preciso socorrer as crianças dos que querem negar a elas caminhos de ciência e dar-lhes no lugar caminhos de consumismo.
Nesse texto, Brecht dá conselhos estéticos, como: “É necessária coragem para dizer que os bons não foram vencidos por causa da sua virtude, mas antes por causa da sua fraqueza. A verdade deve ser mostrada na sua luta com a mentira e nunca apresentada como algo de sublime, de ambíguo e de geral.” E mais adiante: “A verdade deve ser pesada por quem a diz e por quem a ouve. E para nós que escrevemos, é essencial saber a quem a dizemos e quem no-la diz.”
Crianças são inteligentes. Questionar é uma de suas qualidades de aprendizagem. Atualmente, questionamentos como os do texto de Brecht estão quase caindo outra vez na clandestinidade no ambiente educacional, pela pressão do advento neofascista que emergiu. O bolsonarismo tenta mostrar a ciência como profanadora da autoridade da família em educar e a crítica social como algo a ser criminalizado. “Se os tubarões fossem homens” tem para as crianças e para todos nós o mérito de desanuviar os olhares. Os tubarões estão entre nós. Querem controlar.
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