Festival esportivo suburbano realizado entre 4 equipes de futebol feminino no campo do Bomsucesso F.C em maio de 1940 – Foto: © Acervo Biblioteca Nacional
O futebol profissional jogado por mulheres no país tem, pela primeira vez, o compromisso de incentivo do poder público. Mas ainda falta muito para que os investimentos, a profissionalização e a valorização cheguem aos níveis estratosféricos do futebol masculino.
No ano passado, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) informou que destinou cerca de R$ 15 milhões no Brasileirão Feminino. Foram repassados R$ 5 milhões diretamente aos 16 clubes participantes.
O valor está bem distante do que o que a entidade anunciou este ano para série D do campeonato masculino, a última divisão organizada pela Confederação. São R$ 105 milhões no total e 25 milhões aos times. O balanço de 2022 da CBF mostra que a seleção dos homens teve um salto de 45% nos investimentos, enquanto a feminina passou por queda de 40%.
Há desigualdades também nos salários de jogadores e jogadoras e até na escolha de datas e horários para as partidas.”Se não investirmos agora, como vamos colher lá na frente para conseguir manter essa ascensão de desenvolvimento?”, questiona a historiadora Fernanda Haag, que pesquisa questões de gênero no futebol brasileiro. Segundo ela, ainda há muito a ser feito para superar as discrepâncias.
“Mesmo que estejamos em um momento muito especial, tem um milhão de problemas. Não dá para achar que chegamos ao nosso teto e que estamos no paraíso. Há muito a ser feito, inclusive internamente. Por exemplo, nas rodadas finais do Brasileiro da Série A, na fase de grupos, tivemos jogo às três da tarde, em uma segunda-feira. Ano passado, tivemos mais jogos transmitidos na TV aberta do que neste ano. Se querem popularizar a modalidade é preciso garantir que elas que ela chegue ao público.”
A diferença é histórica. No período em que a seleção masculina já era tricampeã mundial – o país venceu o mundial em 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002 – as mulheres eram proibidas de jogar futebol em território nacional. A lei foi instituída em 1941, por Getúlio Vargas, e durou até 1979.
No estudo Representação social da mulher brasileira nas atividades físico-desportivas: da segregação à democratização, a pesquisadora Ludmila Mourão, afirma que havia um contexto de crescente presença feminina nas atividades físicas no período. No entanto, o mito de feminilidade ainda perdurava e esportes que proporcionam alto desenvolvimento muscular eram desaconselhados.
“As representações sociais e práticas voltadas para a harmonia das formas femininas e para as exigências da maternidade futura da mulher brasileira foram incorporadas pelo decreto-lei 3.199, cujo artigo 54 dizia: ‘às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza’.”
Na ditadura militar, a lei de Vargas ganhou contornos mais específicos. Em 1965, o regime estabeleceu que não seria mais permitida “a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo, halterofilismo e baseball.”
As mulheres continuaram em campo informalmente nesse período, em vizinhanças, clubes sociais, iniciativas municipais populares e várzeas. As pesquisas sobre o assunto ainda não chegaram a registros jurídicos ou policiais de punições por causa da presença delas no futebol. Mas havia uma vigilância social, vetos a torneios, viagens de equipes, jogos em estádios, espaços maiores e presença em grandes clubes.
A proibição caiu em 1979, mas o Brasil só passou a contar com uma seleção oficial em 1983. A primeira competição nacional só veio em 2007 com a Copa do Brasil. Somente em 2013 foi organizado o campeonato que inaugurou a história do Brasileiro Feminino e, apenas em 2019, os clubes da série A passaram a ser obrigados a ter também equipes de mulheres.
“Muita água passou embaixo dessa ponte. Se estamos aqui agora é porque remaram muito nessas últimas décadas, inclusive pós-proibição. A luta pela regulamentação foi fundamental, sem ela não estaríamos aqui. Mas as lutas posteriores, primeiro para reconhecer a existência dessa modalidade depois, por um mínimo de estruturação também. Precisamos de condições mínimas de trabalho, precisamos de salário. É importante lembrar”, enfatiza Haag.
Ela ressalta que desenvolver uma modalidade esportiva demanda investimentos e vontade política das entidades e do poder público. A pesquisadora celebra a lei de equiparação para os times da série A e das equipes da Libertadores como essenciais para o processo.
“As pessoas acham que vai cair do céu. O futebol masculino não acordou um dia como essa indústria bilionária. Você investe para depois colher. Também vale questionar se queremos que o futebol feminino chegue nessa lógica extremamente mercantilizada que o masculino tem. Eu não quero. Porque acho que é esse espaço diferente já. Precisamos de uma estrutura, é importante, mas não cair nessa lógica extremamente mercantilizada do futebol de homens é importante também.”
Em abril deste ano, foi publicado o Decreto 11.458/2023, que institui a Estratégia Nacional para o Futebol Feminino. Com ela, o poder público pretende estabelecer políticas para promover, fomentar e incentivar a inserção e a manutenção de meninas e mulheres no futebol.
O texto estabeleceu prazo de 120 dias, a contar da publicação, para que o Ministério do Esporte elabore um diagnóstico da situação atual do futebol feminino do país e um plano de ações para a implementação da Estratégia. Nesse período, a pasta também precisará definir calendários nacional e estadual e normas para contratos, formação e estrutura em estádios.
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