Contos do livro Azul, Violeta, segundo colocado no concurso promovido pela Biblioteca Pública do Paraná e disponível gratuitamente em e-book. Extraído do jornal Cândido, edição 114.
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. Naquela tarde estranha Júlio perguntou, mas antes, muito antes, eu segui pela rua estreita que me levaria até a casa de Ana, era preciso ter certo fôlego para a alcançar, não que corresse, mas as escadarias ao fim de sua estreita rua me pareciam sempre uma espécie de punição ou castigo gratuito dos dias, Ana acabava me convencendo de que dos castigos gratuitos nasciam as melhores filosofias, não discordava, mas pensava em silêncio enquanto admirava seu olhar cansado que talvez eu preferisse não ter filosofia alguma se isso me ajudasse a não precisar enfrentar a gratuidade dos dias, eu sabia que esse pensamento era estúpido, que com certeza havia algo em Ana que eu ainda não tinha conseguido alcançar, um tipo de fumo no olhar que a fazia ver formas inimagináveis nos caminhos. Naquela tarde estranha Júlio perguntou sobre a angústia, mas antes, muito antes, Ana me levou ao seu quarto, depois do café com cigarros e seu olhar sobre o gratuito e as filosofias, depois de minha estupidez, algo não parecia bem, notei em Ana uma espécie de temor, um receio petrificado no dizer ao me puxar pelo braço da cozinha ao corredor até chegar ao seu quarto onde tirou de uma caixa algumas fotos de família, seu Avô muito bem-vestido em um terno preto sob medida com um amigo ao lado, encostados num lindo carro dos anos quarenta, o olhar deles era vago, não era possível saber se tinham noção de que estariam sendo fotografados, até que o som da lâmpada queimando me assustou, vi naquele momento que tudo estava sendo vigiado e registrado, puxei de meu terno o canivete que herdei de meu pai, mas eu sabia que já haviam partido, um pouco antes Júlio me perguntara algo, voltei para poder ouvi-lo novamente, mas já não estava mais ao meu lado, Júlio desaparecera naquela tarde estranha, nunca mais o vi, Ana limpou a foto com as mãos como se rebobinando uma dor, definitivamente algo não estava bem, mas tudo o que eu pensava era na gratuidade dos dias, na rua estreita e sua escadaria enorme, lembrei que Júlio tinha dito algo sobre a angústia, Ana me fez sentar ao seu lado na cama com a caixa de recordações no colo, convenceu-me de que a angústia nascia de um sentimento de responsabilidade, mas eu sabia que estava sendo vigiado, que tudo estava sendo registrado, naquela tarde estranha quando Júlio desapareceu, Ana rebobinou novamente uma dor, mostrou-me outra vez a foto de seu Avô muito elegante com um amigo ao lado, não era possível saber quem havia tirado a foto, o estalo da lâmpada, o sacar de canivetes e vultos irreconhecíveis, manchas negras sobre uma fotografia desgastada, um clarão de mãos idosas cruzadas sobre as pernas, mas antes, muito antes, Júlio perguntou sobre a angústia ao meu lado, encostado comigo em seu carro, antes de desaparecer, antes da lâmpada, antes da escadaria e da gratuidade, antes mesmo de Ana nascer, Júlio perguntou sobre a angústia de esquecer.
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