Garcia Márquez, em 1966, escrevendo “Cem Anos de Solidão” (Foto: reprodução )
“Cem Anos de Solidão”, romance escrito em 1966 e lançado no ano seguinte, deu ao colombiano Gabriel García Márquez o Prêmio Nobel de Literatura de 1982. O livro que tornou Garcia Márquez conhecido internacionalmente lhe rendeu outros inúmeros prêmios. Seu realismo fantástico foi aclamado no mundo literário.
Em 21 de outubro de 1982, a Academia Sueca premiou o escritor colombiano pelo romance, enquanto destacava sua narrativa multifacetada, incluindo seus escritos em jornalismo político e crônica que também o caracterizaram.
(…) Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos.
Primeiro trouxeram o ímã. Um cigano corpulento, de barba rude e mãos de pardal*, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública daquilo que ele mesmo chamava de a oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois lingotes metálicos, e todo o mundo se espantou ao ver que os caldeirões, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam do lugar, e as madeiras estalavam com o desespero dos pregos e dos parafusos tentando se desencravar, e até os objetos perdidos há muito tempo apareciam onde mais tinham sido procurados, e se arrastavam em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. “As coisas têm vida própria”, apregoava o cigano com áspero sotaque, “tudo é questão de despertar a sua alma.” José Arcadio Buendía, cuja desatada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e até mesmo além do milagre e da magia, pensou que era possível se servir daquela invenção inútil para desentranhar o ouro da terra.
Melquíades, que era um homem honrado, preveniu-o: “Para isso não serve.” Mas José Arcadio Buendía não acreditava, naquele tempo, na honradez dos ciganos, de modo que trocou o seu jumento e um rebanho de cabritos pelos dois lingotes imantados. Úrsula Iguarán, sua mulher, que contava com aqueles animais para aumentar o raquítico patrimônio doméstico, não conseguiu dissuadi-lo. “Muito em breve vamos ter ouro de sobra para assoalhar a casa”, respondeu o marido. Durante vários meses empenhou-se em demonstrar o acerto das suas conjeturas. Explorou palmo a palmo a região, inclusive o fundo do rio, arrastando os dois lingotes de ferro e recitando em voz alta o conjuro de Melquíades. A única coisa que conseguiu desenterrar foi uma armadura do século xv, com todas as suas partes soldadas por uma camada de óxido, cujo interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras. Quando José Arcadio Buendía e os quatro homens da sua expedição conseguiram desarticular a armadura, encontraram dentro um esqueleto calcificado que trazia pendurado no pescoço um relicário de cobre com um cacho de cabelo de mulher.
Em março os ciganos voltaram. Desta vez traziam um óculo de alcance e uma lupa do tamanho de um tambor, que exibiram como a última descoberta dos judeus de Amsterdam. Sentaram uma cigana num extremo da aldeia e instalaram o óculo de alcance na entrada da tenda. Mediante o pagamento de cinco reais, o povo se aproximava do óculo e via a cigana ao alcance da mão. “A ciência eliminou as distâncias”, apregoava Melquíades. “Dentro em pouco o homem poderá ver o que acontece em qualquer lugar da terra, sem sair de sua casa.” Num meio-dia ardente, fizeram uma assombrosa demonstração com a lupa gigantesca: puseram um montão de capim seco na metade da rua e atearam fogo nele pela concentração dos raios solares. José Arcadio Buendía, que ainda não se consolara de todo do fracasso dos seus ímãs, concebeu a idéia de utilizar aquele invento como uma arma de guerra. Melquíades, outra vez, tratou de dissuadi-lo. Mas terminou aceitando os dois lingotes imantados e três peças de dinheiro colonial em troca da lupa. Úrsula chorou de consternação. Aquele dinheiro fazia parte de um cofre de moedas de ouro que seu pai acumulara em toda uma vida de privações e que ela havia enterrado debaixo da cama, à espera de uma boa ocasião para investi-las.
José Arcadio Buendía nem sequer tentou consolá-la, entregue que estava por inteiro às suas experiências táticas, com a abnegação de um cientista e até mesmo com o risco da própria vida. Tentando demonstrar os efeitos da lupa na tropa inimiga, ele mesmo se expôs à concentração dos raios solares e sofreu queimaduras que se transformaram em úlceras e demoraram muito tempo para sarar. Diante dos protestos da mulher, alarmada por tão perigosa inventiva, por pouco não incendiou a casa. Passava longas horas no quarto, fazendo os cálculos das possibilidades estratégicas da nova arma, até que conseguiu compor um manual de uma assombrosa clareza didática e um poder de convicção irresistível.
Enviou-o às autoridades, acompanhado de numerosos testemunhos sobre as suas experiências e de vários apêndices de desenhos explicativos, aos cuidados de um mensageiro que atravessou a serra, extraviou-se em pântanos desmesurados, subiu rios tormentosos e esteve a ponto de perecer sob o ataque das feras, o desespero e a peste, até encontrar um caminho que o levasse às mulas do correio. Embora a viagem à capital fosse naquele tempo quase impossível, José Arcadio Buendía prometia tentá-la logo que o governo ordenasse, com o fim de fazer demonstrações práticas do seu invento diante dos poderes militares, e adestrá-los pessoalmente nas complicadas artes da guerra solar. Durante vários anos esperou a resposta. Por fim, cansado de esperar, lamentou-se diante de Melquíades do fracasso da sua iniciativa e o cigano, então, deu uma prova convincente de honradez: devolveu-lhe os dobrões em troca da lupa e deixou, para ele, além disso, uns mapas portugueses e vários instrumentos de navegação. De seu próprio punho e letra escreveu uma apertada síntese dos estudos do monge Hermann, que deixou à sua disposição para que pudesse se servir do astrolábio, da bússola e do sextante. José Arcadio Buendía passou os longos meses de chuva fechado num quartinho que construíra no fundo da casa, para que ninguém perturbasse as suas experiências. Tendo abandonado completamente as obrigações domésticas, permaneceu noites inteiras no quintal, vigiando o movimento dos astros, e quase sofreu uma insolação, por tentar estabelecer um método exato para determinar o meio-dia. Quando se tornou perito no uso e manejo dos seus instrumentos, passou a ter uma noção do espaço que lhe permitiu navegar por mares incógnitos, visitar territórios desabitados e travar relações com seres esplêndidos, sem necessidade de abandonar o seu gabinete. Foi por essa ocasião que adquiriu o hábito de falar sozinho, passeando pela casa sem se incomodar com ninguém, enquanto Úrsula e as crianças suavam em bicas na horta cuidando da banana e da taioba, do aipim e do inhame, do cará e da berinjela. De repente, sem anúncio prévio, a sua atividade febril se interrompeu e foi substituída por uma espécie de fascinação. Esteve vários dias como que enfeitiçado, repetindo para si mesmo em voz baixa um rosário de assombrosas conjeturas, sem dar crédito ao próprio entendimento. Por fim, numa terça-feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de uma vez todo o peso do seu tormento. As crianças haviam de recordar pelo resto da vida a augusta solenidade com que o pai se sentou na cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela pertinácia da sua imaginação, e revelou a eles a sua descoberta:
– A terra é redonda como uma laranja.
Úrsula perdeu a paciência. “Se você pretende ficar louco, fique sozinho”, gritou. “Não tente incutir nas crianças as suas idéias de cigano.” José Arcadio Buendía, impassível, não se deixou amedrontar pelo desespero da mulher que, num impulso de cólera, destroçou o astrolábio contra o solo. Construiu outro, reuniu no quartinho os homens do povoado e demonstrou a eles, com teorias que acabaram sendo incompreensíveis para todos, a possibilidade de regressar ao ponto de partida navegando sempre para o Oriente. A aldeia inteira já estava convencida de que José Arcadio Buendía tinha perdido o juízo, quando Melquíades chegou para pôr a coisa em pratos limpos. Ressaltou em público a inteligência daquele homem que, por pura especulação astronômica, construíra uma teoria já comprovada na prática, se bem que desconhecida até então em Macondo, e como uma prova da sua admiração deu-lhe um presente que havia de exercer uma influência decisiva no futuro da aldeia: um laboratório de alquimia.
Por essa época, Melquíades tinha envelhecido com uma rapidez assombrosa. Nas suas primeiras viagens parecia ter a mesma idade de José Arcadio Buendía. Mas enquanto este conservava a sua força descomunal, que lhe permitia derrubar um cavalo agarrando-o pelas orelhas, o cigano parecia estragado por um mal tenaz. Era, na realidade, o resultado de múltiplas e estranhas doenças contraídas nas suas incontáveis viagens ao redor do mundo.
Conforme ele mesmo contou a José Arcadio Buendía, enquanto o ajudava a montar o laboratório, a morte o seguia por todas as partes, farejando-lhe as calças, mas sem se decidir a dar o bote final. Era um fugitivo de quantas pragas e catástrofes haviam flagelado o gênero humano. Sobreviveu à pelagra na Pérsia, ao escorbuto no arquipélago da Malásia, à lepra em Alexandria, ao beribéri no Japão, à peste bubônica em Madagáscar, ao terremoto na Sicília e a um naufrágio multitudinário no estreito de Magalhães. Aquele ser prodigioso que dizia possuir as chaves de Nostradamus era um homem lúgubre, envolto numa aura triste, com um olhar asiático que parecia conhecer o outro lado das coisas. Usava um chapéu grande e negro, como as asas estendidas de um corvo, e um casaco de veludo patinado pelo limo dos séculos. Mas, apesar da sua imensa sabedoria e de sua aura misteriosa, tinha um peso humano, uma condição terrestre que o mantinha atrapalhado com os minúsculos problemas da vida cotidiana. Queixava-se de achaques de velho, sofria pelos mais insignificantes prejuízos econômicos e tinha deixado de rir há muito tempo, porque o escorbuto lhe havia arrancado os dentes. No sufocante meio-dia em que revelou os seus segredos, José Arcadio Buendía teve a certeza de que aquele era o princípio de uma grande amizade. As crianças se assombraram com os seus relatos fantásticos. Aureliano, que naquele tempo não tinha mais de cinco anos, havia de recordar pelo resto da vida como o viu naquela tarde, sentado contra a claridade metálica e reverberante da janela, iluminando com a sua profunda voz de órgão os territórios mais escuros da imaginação, enquanto esguichava pelas têmporas a gordura derretida pelo calor. José Arcadio, seu irmão mais velho, havia de transmitir aquela imagem maravilhosa, como uma recordação hereditária, a toda a sua descendência. Úrsula, pelo contrário, conservou uma lembrança desagradável daquela visita, porque entrou no quarto no momento em que Melquíades quebrava por distração um frasco de bicloreto de mercúrio.
– É o cheiro do demônio – ela disse.
– Absolutamente – corrigiu Melquíades. – Está comprovado que o demônio tem propriedades sulfúricas, e isto não passa de um pouco de sublimado corrosivo.
Sempre didático, fez uma sábia exposição sobre as virtudes diabólicas do cinabre, mas Úrsula não lhe deu a menor atenção e levou as crianças para rezar. Aquele cheiro acre ficaria para sempre em sua memória vinculado à lembrança de Melquíades.
O laboratório rudimentar – não se falando na profusão de caçarolas, funis, retortas, filtros e coadores – estava composto de uma tubulação primitiva; uma proveta de cristal, de pescoço comprido e estreito, imitação do ovo filosófico; e um alambique construído pelos próprios ciganos, de acordo com as descrições daquele de três braços, de Maria, a judia. Além destas coisas, Melquíades deixou amostras dos sete metais correspondentes aos sete planetas, as fórmulas de Moisés e Zózimo para a duplicação do ouro, e uma série de notas e desenhos sobre os processos do Grande Magistério, que permitiam a quem os soubesse interpretar a tentativa de fabricação da pedra filosofal. Seduzido pela simplicidade das fórmulas para duplicar o ouro, José Arcadio Buendía adulou Úrsula durante várias semanas, para que lhe permitisse desenterrar as suas moedas coloniais e aumentá-las tantas vezes quantas fosse possível subdividir o azougue. Úrsula cedeu, como acontecia sempre, diante da inquebrantável obstinação do marido. Então, José Arcadio Buendía jogou trinta dobrões numa caçarola e os fundiu com raspa de cobre, ouro-pigmento, enxofre e chumbo. Pôs tudo para ferver em fogo forte, num caldeirão de óleo de rícino, até obter um xarope espesso e fedorento, mais parecido com uma calda vulgar do que com o ouro magnífico. Em azarados e desesperados processos de destilação, fundida com os sete metais planetários, trabalhada com o mercúrio hermético e o vitríolo de Chipre, e novamente cozida em banha de porco na falta de óleo de rábano, a preciosa herança de Úrsula ficou reduzida a um torresmo carbonizado que não pôde ser desprendido do fundo do caldeirão.
Quando os ciganos voltaram, Úrsula já havia predisposto toda a população contra eles. Mas a curiosidade pôde mais que o temor, porque daquela vez os ciganos percorreram a aldeia fazendo um barulho ensurdecedor com todo tipo de instrumentos musicais, enquanto o pregoeiro anunciava a exibição da mais fabulosa descoberta dos nasciancenos. De modo que todo mundo foi à tenda, e com o pagamento de um centavo viu um Melquíades juvenil, refeito, desenrugado, com uma dentadura nova e radiante. Os que recordavam as suas gengivas destruídas pelo escorbuto, as suas bochechas flácidas e os seus lábios murchos, estremeceram de pavor diante daquela prova decisiva dos poderes sobrenaturais do cigano. O pavor se converteu em pânico quando Melquíades tirou os dentes, intactos, engastados nas gengivas, e mostrou-os ao público por um instante – um instante fugaz em que voltou a ser o mesmo homem decrépito dos anos anteriores – e botou-os outra vez e sorriu de novo com um domínio pleno da sua juventude restaurada. Até o próprio José Arcadio Buendía considerou que os conhecimentos de Melquíades tinham chegado a extremos intoleráveis, mas experimentou um saudável alvoroço quando o cigano lhe explicou a sós o mecanismo da sua dentadura postiça. Aquilo lhe pareceu ao mesmo tempo tão simples e prodigioso, que da noite para o dia perdeu todo o interesse pelas pesquisas de alquimia; sofreu uma nova crise de mau humor, não voltou a comer de maneira regular e passava o dia dando voltas pela casa. “Estão ocorrendo coisas incríveis pelo mundo”, dizia a Úrsula. “Aí mesmo, do outro lado do rio, existe todo tipo de aparelho mágico, enquanto nós continuamos vivendo como os burros.” Os que o conheciam desde os tempos da fundação de Macondo se assombravam do quanto ele havia mudado sob a influência de Melquíades.
No princípio, José Arcadio Buendía era uma espécie de patriarca juvenil, que dava instruções para o plantio e conselhos para a criação de filhos e animais, e colaborava com todos, mesmo no trabalho físico, para o bom andamento da comunidade. Posto que a sua casa fosse desde o primeiro momento a melhor da aldeia, as outras foram arranjadas à sua imagem e semelhança. Tinha uma saleta ampla e bem iluminada, uma sala de jantar em forma de terraço com flores de cores alegres, dois quartos, um quintal com um castanheiro gigantesco, um jardim bem plantado e um curral onde viviam em comunidade pacífica os cabritos, os porcos e as galinhas. Os únicos animais proibidos não só em casa, mas também em todo o povoado, eram os galos de briga. A diligência de Úrsula andava de braços com a de seu marido. Ativa, miúda, severa, aquela mulher de nervos inquebrantáveis, a quem em nenhum momento da vida se ouviu cantar, parecia estar em todas as partes desde o amanhecer até a noite já bem avançada, sempre perseguida pelo suave sussurro das suas anáguas de cambraia. Graças a ela, o chão de terra batida, os muros de barro sem caiação, os rústicos móveis de madeira construídos por eles mesmos estavam sempre limpos, e as velhas arcas onde se guardava a roupa exalavam um cheiro tênue de manjericão. José Arcadio Buendía, que era o homem mais empreendedor que se poderia ver na aldeia, determinara de tal modo a posição das casas que a partir de cada uma se podia chegar ao rio e se abastecer de água com o mesmo esforço; e traçara as ruas com tanta habilidade que nenhuma casa recebia mais sol que a outra na hora do calor. Dentro de poucos anos, Macondo se tornou uma aldeia mais organizada e laboriosa que qualquer das conhecidas até então pelos seus trezentos habitantes. Era na verdade uma aldeia feliz, onde ninguém tinha mais de trinta anos e onde ninguém ainda havia morrido.
Desde os tempos da fundação, José Arcadio Buendía construíra alçapões e gaiolas. Em pouco tempo, encheu de corrupiões, canários, azulões e pintassilgos não só a própria casa, mas todas as da aldeia. O concerto de tantos pássaros diferentes chegou a ser tão aturdidor que Úrsula tapou os ouvidos com cera de abelha para não perder o senso da realidade. Na primeira vez que chegou a tribo de Melquíades, vendendo bolas de vidro para dor de cabeça, todo mundo se surpreendeu por terem podido encontrar aquela aldeia perdida no marasmo do pântano, e os ciganos confessaram que haviam se orientado pelo canto dos pássaros.
Aquele espírito de iniciativa social desapareceu em pouco tempo, arrastado pela febre dos ímãs, pelos cálculos astronômicos, sonhos de transmutação e ânsias de conhecer as maravilhas do mundo. De empreendedor e limpo, José Arcadio Buendía se converteu num homem de ar vadio, descuidado no vestir, com uma barba selvagem a que Úrsula conseguia dar forma a duras penas, com uma faca de cozinha. Não faltou quem o considerasse vítima de algum estranho sortilégio. Mas até os mais convencidos da sua loucura abandonaram o trabalho e a família para segui-lo, quando atirou ao ombro as foices e machados, e pediu a participação de todos para abrir uma picada que pusesse Macondo em contato com os grandes inventos.
José Arcadio Buendía ignorava por completo a geografia da região. Sabia que para o Oriente estava a serra impenetrável, e do outro lado da serra a antiga cidade de Riohacha, onde em épocas passadas – segundo lhe havia contado o primeiro Aureliano Buendía, seu avô – Sir Francis Drake era dado ao esporte de caçar jacarés a tiros de canhão. Os bichos eram depois remendados, recheados de palha e mandados para a Rainha Elizabeth. Na sua juventude, ele e seus homens, com mulheres e crianças e animais e toda espécie de utensílios domésticos, atravessaram a serra procurando uma saída para o mar, e ao fim de vinte e seis meses desistiram da empresa e fundaram Macondo, para não ter que empreender o caminho de volta. Era, pois, uma rota que não lhe interessava, porque só podia conduzi-lo ao passado. Ao Sul estavam os charcos cobertos de uma eterna nata vegetal, e o vasto universo do grande pantanal, que, segundo testemunho dos ciganos, carecia de limites. O grande pantanal se confundia ao Ocidente com uma extensão aquática sem horizontes, onde havia cetáceos de pele delicada, cabeça e torso de mulher, que perdiam os navegantes com o feitiço das suas tetas descomunais. Os ciganos navegavam seis meses por essa rota antes de alcançar a faixa de terra firme por onde passavam as mulas do correio. De acordo com os cálculos de José Arcadio Buendía, a única possibilidade de contato com a civilização era a rota do Norte. De modo que dotou de foices, facões e armas de caça os mesmos homens que o acompanharam na fundação de Macondo; pôs numa mochila os seus instrumentos de orientação e os seus mapas, e empreendeu a temerária aventura.
Nos primeiros dias, não encontraram nenhum obstáculo apreciável. Desceram pela pedregosa margem do rio até o lugar onde anos antes haviam achado a armadura do guerreiro e ali penetraram na mata por um caminho de laranjeiras silvestres. Ao fim da primeira semana, mataram e assaram um veado, mas se conformaram em comer a metade e salgar o resto para os próximos dias. Trataram de adiar com essa precaução a necessidade de continuar comendo araras, cuja carne azul tinha um áspero sabor de almíscar. Em seguida, durante mais de dez dias, não voltaram a ver o sol. O solo tornou-se mole e úmido, como cinza vulcânica, e a vegetação fez-se cada vez mais insidiosa, e ficaram cada vez mais longínquos os gritos dos pássaros e a algazarra dos macacos, e o mundo ficou triste para sempre. Os homens da expedição se sentiram angustiados pelas lembranças mais antigas, naquele paraíso de umidade e silêncio, anterior ao pecado original, onde as botas se afundavam em poças de óleos fumegantes e os facões destroçavam lírios sangrentos e salamandras douradas. Durante uma semana, quase sem falar, avançaram como sonâmbulos por um universo de depressão, iluminados apenas por uma tênue reverberação de insetos luminosos e com os pulmões agoniados por um sufocante cheiro de sangue. Não podiam regressar, porque a picada que iam abrindo em pouco tempo tornava a se fechar com uma vegetação nova que ia crescendo a olhos vistos. “Não tem importância”, dizia José Arcadio Buendía. “O essencial é não perder a orientação.” Sempre de olho na bússola, continuou guiando os seus homens para o Norte invisível, até que conseguiram sair da região encantada. Era uma noite densa, sem estrelas, mas a escuridão estava impregnada de um ar novo e limpo. Esgotados pela prolongada travessia, penduraram as redes e dormiram profundamente pela primeira vez em duas semanas. Quando acordaram, já com o sol alto, ficaram pasmos de fascinação. Diante deles, rodeado de fetos e palmeiras, branco e empoeirado na silenciosa luz da manhã, estava um enorme galeão espanhol. Ligeiramente inclinado para estibordo, de sua mastreação intacta penduravam-se os fiapos esquálidos do velame, entre a enxárcia enfeitada de orquídeas. O casco, coberto por uma lisa couraça de caracas e musgo tenro, estava firmemente encravado num chão de pedras. Toda a estrutura parecia ocupar um âmbito próprio, um espaço de solidão e esquecimento, vedado aos vícios do tempo e aos maus hábitos dos pássaros. No interior, que os expedicionários exploraram com um secreto fervor, não havia nada além de um espesso bosque de flores.
O achado do galeão, indício da proximidade do mar, quebrantou o ímpeto de José Arcadio Buendía. Considerava como uma brincadeira do seu destino travesso ter procurado o mar sem encontrá-lo, ao preço de sacrifícios e incômodos sem conta, e tê-lo encontrado agora sem procurá-lo, atravessado no seu caminho como um obstáculo intransponível. Muitos anos depois, o Coronel Aureliano Buendía voltou a atravessar a região, quando já era uma rota regular do correio, e a única coisa que encontrou da nave foi o esqueleto carbonizado no meio de um campo de amapolas. Só então convencido de que aquela história não tinha sido fruto da imaginação de seu pai, perguntou-se como pudera o galeão penetrar até aquele ponto na terra firme. Mas José Arcadio Buendía não levantou esse problema quando encontrou o mar, ao fim de outros quatro dias de viagem, a doze quilômetros de distância do galeão. Seus sonhos terminavam diante desse mar de cor cinza, espumoso e sujo, que não merecia os riscos e sacrifícios da sua aventura.
– Porra! – gritou. – Macondo está cercado de água por todos os lados.
A idéia de um Macondo peninsular prevaleceu durante muito tempo, inspirada no mapa arbitrário que José Arcadio Buendía desenhou ao regressar da sua expedição. Traçou-o com raiva, exagerando de má fé as dificuldades de comunicação, como que para castigar-se a si mesmo da absoluta falta de senso com que escolheu o lugar. “Nunca chegaremos a parte alguma”, lamentava-se para Úrsula. “Aqui haveremos de apodrecer em vida sem receber os benefícios da ciência.” Essa certeza, ruminada por vários meses no quartinho do laboratório, levou-o a conceber o projeto de trasladar Macondo para um lugar mais propício. Mas desta vez Úrsula se antecipou aos seus desígnios febris. Num secreto e implacável trabalho de formiga, predispôs as mulheres da aldeia contra a veleidade dos seus homens, que já começavam a se preparar para a mudança. José Arcadio Buendía não soube em que momento, nem em virtude de que forças adversas, seus planos se foram emaranhando numa teia de pretextos, contratempos e evasivas, até se transformarem em pura e simples ilusão. Úrsula observou-o com uma atenção inocente, e até sentiu por ele um pouco de piedade na manhã em que o encontrou no quartinho dos fundos comentando entre dentes os seus sonhos de mudança, enquanto colocava nas suas caixas originais as peças do laboratório. Deixou-o terminar. Deixou-o pregar as caixas e pôr as suas iniciais em cima com um pincel cheio de tinta, sem lhe fazer nenhuma censura, mas já sabendo que ele sabia (porque o ouviu dizer em seus surdos monólogos) que os homens do povoado não o seguiriam na empresa. Só quando começou a desmontar a porta do quartinho é que Úrsula se atreveu a lhe perguntar por que o fazia, e ele lhe respondeu com certa amargura: “Já que ninguém quer ir embora, nós iremos sozinhos.” Úrsula não se alterou.
– Nós não iremos – disse. – Ficaremos aqui, porque aqui tivemos um filho.
– Ainda não temos um morto – ele disse. – A gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele.
Úrsula replicou, com uma suave firmeza:
– Se é preciso que eu morra para que vocês fiquem aqui, eu morro.
José Arcadio Buendía não acreditou que fosse tão rígida a vontade de sua mulher. Tratou de seduzi-la com o feitiço da sua fantasia, com a promessa de um mundo prodigioso onde bastava derramar uns líquidos mágicos na terra para que as plantas dessem frutos à vontade do homem, e onde se vendiam a preço de banana toda espécie de aparelhos contra a dor. Mas Úrsula foi insensível à sua clarividência.
– Em vez de andar por aí com essas novidades malucas, você devia era se ocupar dos seus filhos – replicou. – Olhe como estão, abandonados ao deus-dará, como os burros.
José Arcadio Buendía tomou ao pé da letra as palavras da mulher. Olhou pela janela e viu os dois meninos descalços na horta ensolarada, e teve a impressão de que só naquele instante tinham começado a existir, concebidos pelos rogos de Úrsula. Alguma coisa aconteceu então no seu íntimo; alguma coisa misteriosa e definitiva que o desprendeu do tempo atual e o levou à deriva por uma inexplorada região de lembranças. Enquanto Úrsula continuava varrendo a casa que agora estava certa de não abandonar pelo resto da vida, ele permaneceu contemplando as crianças com um olhar absorto, até que seus olhos se encheram d’água e ele os enxugou com o dorso da mão, exalando um profundo suspiro de resignação.
– Bem – disse. – Diga-lhes que venham me ajudar a tirar as coisas dos caixotes.
José Arcadio, o mais velho dos meninos, havia completado quatorze anos. Tinha a cabeça quadrada, o cabelo hirsuto e o gênio voluntarioso do pai. Ainda que tivesse o mesmo impulso de crescimento e fortaleza física, já então era evidente que carecia de imaginação. Foi concebido e dado à luz durante a penosa travessia da serra, antes da fundação de Macondo, e seus pais deram graças aos céus ao comprovar que não tinha nenhum órgão de animal. Aureliano, o primeiro ser humano que nasceu em Macondo, ia fazer seis anos em março. Era silencioso e retraído. Tinha chorado no ventre da mãe e nasceu com os olhos abertos. Enquanto lhe cortavam o umbigo movia a cabeça de um lado para o outro, reconhecendo as coisas do quarto, e examinava o rosto das pessoas com uma curiosidade sem assombro. Depois, indiferente aos que vinham conhecê-lo, manteve a atenção concentrada no teto de palmas, que parecia estar quase desabando sob a tremenda pressão da chuva. Úrsula não tornou a se lembrar da intensidade desse olhar até o dia em que o pequeno Aureliano, na idade de três anos, entrou na cozinha no momento em que ela retirava do fogão e punha na mesa uma panela de caldo fervente. O garoto, perplexo na porta, disse: “Vai cair.” A panela estava posta bem no centro da mesa, mas, logo que o menino deu o aviso, iniciou um movimento irrevogável para a borda, como impulsionada por um dinamismo interior, e se espedaçou no chão. Úrsula, alarmada, contou o episódio ao marido, mas este o interpretou como um fenômeno natural. Sempre fora assim, alheio à existência dos filhos, em parte porque considerava a infância como um período de insuficiência mental, e em parte porque estava sempre absorto por demais nas suas próprias especulações quiméricas.
Desde a tarde, porém, em que chamou os meninos para que o ajudassem a desempacotar as coisas do laboratório, dedicou-lhes as suas melhores horas. No quartinho separado, cujas paredes se foram enchendo pouco a pouco de mapas inverossímeis e gráficos fabulosos, ensinou-os a ler e escrever e a fazer contas, e falou das maravilhas do mundo não só até onde chegavam os seus conhecimentos, mas forçando a extremos incríveis os limites da sua imaginação. Foi assim que os meninos acabaram por aprender que no extremo meridional da África havia homens tão inteligentes e pacíficos que o seu único entretenimento era sentar para pensar, e que era possível atravessar a pé o mar Egeu pulando de ilha em ilha até o porto de Salônica. Aquelas alucinantes sessões ficaram de tal modo impressas na memória dos meninos, que muitos anos mais tarde, um segundo antes de que o oficial dos exércitos regulares desse a ordem de fogo ao pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía tornou a viver a suave tarde de março em que seu pai interrompeu a lição de Física e ficou fascinado, com a mão no ar e os olhos imóveis, ouvindo a distância os pífaros e tambores e guizos dos ciganos que uma vez mais chegavam à aldeia, apregoando a última e assombrosa descoberta dos sábios de Mênfis.
Eram ciganos novos. Homens e mulheres jovens que só conheciam a sua própria língua, exemplares formosos de pele oleosa e mãos inteligentes, cujas danças e músicas semearam nas ruas um pânico de alvoroçada alegria, com as suas araras pintadas de todas as cores que recitavam romanças italianas, e a galinha que punha uma centena de ovos de ouro ao som do pandeiro, e o macaco amestrado que adivinhava o pensamento, e a máquina múltipla que servia ao mesmo tempo para pregar botões e baixar a febre, e o aparelho para esquecer as más recordações, e o emplastro para perder o tempo, e mil outras invenções tão engenhosas e insólitas, que José Arcadio Buendía gostaria de inventar a máquina da memória para poder se lembrar de todas. Num instante transformaram a aldeia. Os habitantes de Macondo se encontraram de repente perdidos nas suas próprias ruas, aturdidos pela feira multitudinária.
Levando um garoto em cada mão, para não perdê-los no tumulto, tropeçando com saltimbancos de dentes encouraçados de ouro e malabaristas de seis braços, sufocado pelo confuso hálito de esterco e sândalo que exalava a multidão, José Arcadio Buendía andava como um louco procurando Melquíades por todas as partes, para que lhe revelasse os infinitos segredos daquele pesadelo fabuloso. Dirigiu-se a vários ciganos que não entenderam a sua língua.
Por fim chegou ao lugar onde Melquíades costumava plantar a sua tenda e encontrou um armênio taciturno que anunciava em castelhano um xarope para se fazer invisível. Tinha tomado de um gole uma taça da substância ambarina, quando José Arcadio Buendía abriu passagem aos empurrões por entre o grupo absorto que presenciava o espetáculo e conseguiu fazer a pergunta. O cigano o envolveu no clima atônito do seu olhar, antes de se transformar numa poça de alcatrão fedorento e fumegante sobre a qual ficou boiando a ressonância de sua resposta: “Melquíades morreu.” Aturdido pela notícia, José Arcadio Buendía permaneceu imóvel, tratando de vencer a aflição, até que o grupo se dispersou, reclamando por outros artifícios, e a poça do armênio taciturno se evaporou completamente.
Mais tarde, outros ciganos lhe confirmaram que na verdade Melquíades tinha sucumbido às febres, nas dunas de Cingapura, e o seu corpo tinha sido jogado no lugar mais profundo do mar de Java. Os meninos não se interessaram pela notícia. Teimavam para que seu pai os levasse para conhecer a portentosa novidade dos sábios de Mênfis, anunciada na entrada de uma tenda que, segundo diziam, pertenceu ao Rei Salomão. Tanto insistiram que José Arcadio Buendía pagou os trinta reais e os conduziu até o centro da barraca, onde havia um gigante de torso peludo e cabeça raspada, com um anel de cobre no nariz e uma pesada corrente de ferro no tornozelo, vigiando um cofre de pirata. Ao ser destampado pelo gigante, o cofre deixou escapar um hálito glacial. Dentro havia apenas um enorme bloco transparente, com infinitas agulhas internas nas quais se despedaçava em estrelas de cores a claridade do crepúsculo. Desconcertado, sabendo que os meninos esperavam uma explicação imediata, José Arcadio Buendía atreveu-se a murmurar:
– É o maior diamante do mundo.
– Não – corrigiu o cigano. – É gelo.
José Arcadio Buendía, sem entender, estendeu a mão para o bloco, mas o gigante afastou-a. “Para pegar, mais cinco reais”, disse. José Arcadio Buendía pagou, e então pôs a mão sobre o gelo, e a manteve posta por vários minutos, enquanto o coração crescia de medo e de júbilo ao contato do mistério. Sem saber o que dizer, pagou outros dez reais para que os seus filhos vivessem a prodigiosa experiência. O pequeno José Arcadio negou-se a tocá-lo.
Aureliano, em compensação, deu um passo para diante, pôs a mão e retirou-a no ato. “Está fervendo”, exclamou assustado. Mas o pai não lhe prestou atenção. Embriagado pela evidência do prodígio, naquele momento se esqueceu da frustração das suas empresas delirantes e do corpo de Melquíades abandonado ao apetite das lulas. Pagou outros cinco reais, e com a mão posta no bloco, como que prestando um juramento sobre o texto sagrado, exclamou:
– Este é o grande invento do nosso tempo. (…)
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