Ilustração de Aline Daka
“E estas que estão penduradas?”, perguntou a mulher, apontando para as plantas sem folhas ou flores dispostas como roupas em um varal.
“Estavam com as raízes apodrecidas, não completamente, apenas parte delas. O jardineiro dispôs neste varal, uma espécie de UTI, depois de retirar a parte comprometida e cauterizar com canela em pó, para evitar que o apodrecimento se alastrasse. Parecem estar mortas?”, disse o botânico voltando suas mãos para tocar as plantas de dimensões medianas.
“Parecem, sim. Não fosse essa cor verde dormente, que é como a cor do nosso sangue por baixo da pele enquanto ainda vivemos.”
“Mas a seiva da rosa do deserto é branca, como leite. O verde que você vê é a clorofila no processo de fotossíntese, não é o ‘sangue’”, riu sutilmente da comparação que ela fazia.
“Algo me transmite que ela está viva, foi o que quis dizer.”
A mulher então se afasta em direção ao grande jardim, com muitas espécies plantadas diretamente no solo, diferente do galpão onde se encontravam há pouco. Entre uma e outra, de tamanhos variados, do vaso ao arbusto, havia colunas com plantas de diferentes formas em sua base. A mulher, a princípio, não avistou nenhum desenho na paisagem, mas, à medida em que se afastava, percebia que as plantas estavam dispostas em intervalos matemáticos, como se quisessem desenhar no espaço daquela chácara um labirinto, embora não pudesse chamar aqueles corredores assim por não serem tão eficientes como os de murtas.
De fato, a mulher estava impressionada com a estranha beleza daquela espécie. Imaginava-a agora na decoração de seu apartamento, impressionando os que se permitissem. Ouviu seu amigo botânico explicar como através da poda correta poderia forjar uma copa mais volumosa e, consequentemente, com mais flores: lilases, vermelhas, brancas, e tinha avistado mesmo uma de cor negra. Se crescesse um único caule, como ouviu na explanação, bastava decepar na altura correta para estimular a planta a criar novos ramos que compensarão a perda, “ah, como na vida…”, ela sorriu. Os troncos nodosos que evidenciavam formas estranhas, quase bizarras, não eram caules, mas raízes que estiveram enterradas no solo e se metamorfoseavam em tronco, em um processo, se ela não se engana, chamado de “levantamento de caudex”, que nada mais é que colocar um “degrau” de pedras e substrato deixando as raízes robustas à vista, retirando com cuidado as auxiliares, mas tendo cuidado de deixá-las na parte que permanecerá enterrada para que possam alimentar a planta. O encanto não estava só na aparência, mas na natureza e nos artifícios que os homens utilizavam para domá-la.
Mas o que a mulher não ouviu do botânico , e o jardineiro permaneceu em silêncio apenas executando as ordens e escutando as explicações dadas pelo patrão, é que aquela escultura da natureza abrigava em sua seiva um poderoso veneno. Ninguém imaginava que nas horas vagas este homem simples, tido como inculto, se dedicava a encontrar a fórmula correta para embeber as flechas que seriam disparadas contra os madeireiros que arruinavam sua terra natal, e que, mesmo à distância, recebia notícias frequentes dos crimes ignorados pelos que deveriam zelar pela floresta.
Já antevia, com contentamento, o grande alvoroço que sua batalha causaria no coração da selva. Ele, que nunca havia manejado arco e flecha, nem mesmo nunca tinha visto ninguém fazê-lo, intuía que na remota vida de seus ancestrais aquela era uma habilidade que havia sido desenvolvida, e transmitida, agora, por sua seiva. Tudo porque havia descoberto, num dos livros do botânico, aquela particularidade sobre a rosa estrangeira a que foi destacado para cuidar já há algum tempo. Descobriu, por exemplo, que nômades da África utilizavam a seiva curada após longa fervura para macular suas armas. Que tornavam aquele leite da terra uma espessa calda escura para aderir sem dificuldade à ponta das lanças. E o jardineiro, inspirado, testava sua pontaria na imagem do ditador e suas caretas replicadas ao infinito pelos jornais. Quando se encontrava só, e longe do patrão subserviente, pendurava as folhas num suporte para que lhe servissem de alvo. Atirava uma, duas, muitas vezes. Estava cada vez melhor, tinha consciência, assim como tinha consciência de que estava protegido pelo seu silêncio e pelas pessoas que o cercavam e percebiam-no quase inofensivo, “homem de pouco vocabulário”, um jardineiro servil, incapaz de fazer algo diferente do que lhe determinava o seu senhor.
A mulher estava fascinada pela beleza da rosa. O botânico, envaidecido pela fascinação que o objeto de sua devoção provocava. O jardineiro só tinha mente e coração para o que poderia ser mudado.
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