Estrela e Paulo Leminski – Foto: Jorge Beraldo / Reproduzido do jornal Cândido – 153
De Estrela Ruiz Leminski / Jornal Cândido
Todo dia 24 de agosto é o aniversário de uma falta. Uma falta enorme e coletiva. O cara bigodudo, que foi poetar em outras dimensões, é a ponte com meus ancestrais. É o meu édipo. É a minha medida das coisas. É o meu pai.
A minha falta é de coisas simples demais para o gosto da imprensa. É trivial, cotidiano e abstrato. O sorriso, o jeito de chamar, o abraço. A piada sem graça, as musiquinhas loucas criadas no violão, o mesmo disco do The Police no repeat, a marchinha de carnaval. Ele era incrível.
Mas também era chato, crítico e, na maior parte do tempo de sua vida pública, uma persona. Sempre no palco. Sempre causando. Sempre competindo com qualquer um que fosse minimamente desafiador intelectualmente. Eu sei que ele foi pioneiro. Foi múltiplo quando ninguém mais era. Não desprezava nenhum repertório, enquanto todo mundo se dividia entre quem ouvia Chico e quem ouvia Caetano. Hoje, eu também acredito que ele seria um Caetano, mas e se ele estivesse sendo um Tom Zé?
Lido com o luto há 35 anos. Não só o meu (o divã que lute), mas de muitas pessoas que eu encontro. Quem queria ter conhecido. Que conheceu e gostaria de ter sido mais próximo ou inventa mais intimidade. Quem foi realmente chegado e hoje não sabe o que fazer com isso. Eu entendo: a forma como ele falava com as pessoas fazia se sentirem o máximo. Ele tinha esse dom: fazer todo mundo se sentir genial. Essa é a falta delas. Para elas o que falta é o reforço, é o crédito, é o ego.
Paulo Leminski, Caetano Veloso e Alice Ruiz. – Foto: Nuni Goes / Reproduzido do jornal Cândido 153
Ser filha dos meus pais é ter que responder com uma frequência absurda como é ser filha deles, e os lugares deles na literatura, na minha vida. Algumas perguntas os críticos e teóricos estão ainda debatendo, rendem teses. Outras são a busca interna de um lugar da prateleira ao divã.
Posso dizer que ser filha dos meus pais é um privilégio, ser influenciada por eles não. Isso eu compartilho com toda a minha geração, a anterior e com as seguintes. Obrigada, Ricardo Silvestrin, por essa formulação tão acertada.
Mas dentro do meu processo individual a minha busca foi ir para trás e entender o porquê deles serem assim. Entender a quebra de geração.
Entender o que psicanaliticamente a contracultura fez, só entendendo a geração anterior. Saber a origem de quem te criou, e quem criou quem te criou é poupar terapia.
Eu não conheci meus avós, eles faleceram antes de eu nascer. Tudo o que construí como identificação, afeto ou lembrança deles veio de relatos de outras pessoas. Narrativas. Sempre quis saber quais eram as suas origens. Então, fui juntando toda a pesquisa, relatos e pistas e criei uma história para cada um desses avós. Assim, acabei de publicar um livro chamado Quando a inocência morreu.
Construí minha versão para cada um deles, mergulhando em dicções diferentes para cada personagem. Comecei pela história da minha família, mas em algum momento assumi a ideia de ficção. Com isso, além da liberdade criativa, tomei a liberdade de incorporar à minha história os causos das famílias de amigos.
A narrativa é guiada pelas perguntas base de qual‐ quer pesquisa: quem, quando, onde e por quê. Uma mistura de ficção e pesquisa histórica, algo como uma biografia fantástica, permeada por livros, baralhos, árvores e ciganos. São histórias sobre pertencimento, ancestralidade e identidade que se entrelaçam.
Foram dez anos de pesquisa. Um mergulho em documentos e relatos no universo da prosa para construir as memórias do que eu não vivi. Em histórias de família, só sobra o que é grandioso. De avós para netos desatentos ficam aquelas histórias que parecem inventadas. Assim, em meio à memorabilia, se fixa o que parece importante ou bizarro. Os sentimentos e as motivações das escolhas se perdem entre os documentos que sobram.
1973: Leminski e Alice com os filhos Aurea e Miguel. – Foto: Acervo da autora / Reproduzido do Cândido, 153
Dizem que toda família tem um doido que é toma‐ do pelo espírito da pesquisa genealógica e, na minha família, sou eu. Comecei a pesquisar culturas, fotos e dados de cada época e lugar. Me perdi diversas vezes nas pesquisas porque a curiosidade é infinita. Sou apaixonada por história, ruínas e lugares antigos.
Pesquisar o sobrenome Leminski teve um grande percalço: meu pai. Quando pesquisava meus antepassados, choviam nomes de ruas, de escolas, de matérias no jornal e trabalhos acadêmicos.
Leminski nunca foi o sobrenome original. Isso sempre foi sabido pela família. Em um livro, que se diz uma pesquisa histórica sobre meu pai, consta que meu bisavô Leminski veio para o Brasil com Catharina e o primeiro filho, Miguel. Essa história é uma invenção. O que estava registrado eram histórias pressupostas, mal contadas e mal pesquisadas.
Quando encontrei o documento do navio de chegada de meu bisavô, e não estavam nem minha bisavó e nem meu tio-avô Miguel, resolvi investigar os documentos por mim mesma. Comecei a procurar os familiares, pesquisar em sites e fiz teste de saliva de ancestralidade. Nesse caminho, descobri diversos primos. Cada um deles ia me trazendo mais fragmentos de histórias.
Meu bisavô, Pedro Lemiszka, nasceu em 1866 na aldeia de Yavoriv, no antigo Império Austro-Húngaro, na região da Galícia. Mudou-se para Narajów, ambas cidades localizadas atualmente na Ucrânia. Em 1895, partiu com sua primeira esposa, Parania Leminski, e os filhos Anna, João e Nicolas. Infelizmente, Nicolas faleceu ainda bebê no porto de Gênova, na Itália. A família embarcou no navio a vapor Alacritá em 18 de agosto, chegando ao porto do Rio de Janeiro em setembro do mesmo ano. Foram declarados de nacionalidade polaca e a grafia do sobrenome foi alterada para “Leminski”. Tragicamente, em Curitiba, o filho João, de apenas 5 anos, também faleceu.
Pedro foi encaminhado para uma região de imigrantes poloneses em Palmeira (Paraná), especificamente na cidade de Porto Amazonas, onde trabalhou como ferroviário. Sua primeira esposa, Parania Leminski, faleceu em 1896. Em novembro de 1897, Pedro casou-se com sua segunda esposa, Catharina Harapi Goli, também imigrante, com quem teve oito filhos, incluindo meu avô, Paulo Leminski.
Muitas dessas informações foram descobertas ao vasculhar os documentos do Arquivo Nacional e da Hemeroteca Digital, que fornecem pesquisas gratuitas há décadas.
Mas o acaso também teve seu papel. Quando comecei a investigar a árvore genealógica, ainda tínhamos muitas dúvidas. Durante a montagem da exposição “Meu Coração de Polaco Voltou”, dedicada ao aspecto polonês na obra do meu pai, um dicionário polonês-português caiu aberto na última página. Nas anotações de meu pai estava escrito Pedro Lemiszka ou Mishka, vindo da aldeia Jaworów, e destacado em letras grandes o nome da cidade “Narajów”.
Narájow
Uma mosca pouse no mapa
e me pouse em Narájow,
a aldeia donde veio
o pai do meu pai,
o que veio fazer a América,
o que vai fazer o contrário,
a Polônia na memória,
o Atlântico na frente,
o Vístula na veia.
Que sabe a mosca da ferida
que a distância faz na carne viva,
quando um navio sai do porto
jogando a última partida?
Onde andou esse mapa que
só agora estende a palma
para receber essa mosca,
que nele cai, matemática?
Paulo Leminski
*
Hoje, ao descobrir que Jaworów era a grafia polonesa da cidade de Yavoriv, acompanho as notícias com muita tristeza: essa é uma das cidades atingidas na guerra atual com a Rússia.
Ao longo de sua trajetória como poeta, escritor e jornalista, meu pai sempre defendeu e se orgulhou de suas raízes, transformando o amor pela terra de seus avós em inspiração para muitos poemas, textos e artigos. Ele morreu sem saber exatamente onde ficava Narajów.
Além disso, ele também nunca soube que minha mãe, a também escritora Alice Ruiz, acreditava que seu lado paterno fosse alemão, quando na verdade a cidade de sua avó, Mikołajki, hoje faz parte da Polônia. Os Nowak, os Ciepluckowna, os Stawienscanka, os Lukowski da sua árvore genealógica revelam que ela é tão polonesa quanto ele. Essa pesquisa me fez descobrir que sou polonesa de pai e mãe.
Paulo e Alice. – Foto: Dico Kremer / Reproduzida do jornal Cândido 153
Graças a essas lacunas, pesquisei a cultura polonesa: a deusa do inverno Marzanna, as compotas de cogumelos, e palavras tão próximas do português como problemu, zupa, bluza, wino, tygrys, de facto. Sem mencionar as palavras idênticas: sério, zero, filosofia, melodia, magia, história, poeta.
Cresci com essa questão do luto, da poesia, da história, da cultura, da pesquisa.
Além da convivência pessoal, a proximidade com a obra, os projetos que construímos, fez com que tivéssemos que pesquisar muito, seja para edição de livros, pensar curadoria de exposições ou auxiliar pesquisadores acadêmicos.
Pena de quem tenta rotular Leminski. Muito pop para os concretas, muito punk para os tropicalistas, muito culto para a geração mimeógrafo, muito provinciano para o eixo, muito poliglota para os modernistas, muito músico para os simbolistas, muito boêmio para os acadêmicos, muito família para os beatnicks.
Quem tenta pregar um rótulo escorrega. Cada pessoa realmente só vai poder falar de algumas facetas. Uma pesquisa é coisa séria, mas não é tão difícil se esforçar para ser bom pesquisador. Basta respeitar a fonte. Respeitar no sentido etimológico, re−spectare, olhar de novo e de novo.
Meu pai era profundo conhecedor de história e literatura. Foi professor dessas disciplinas, sabia com exatidão suas fronteiras.
Mas acima de tudo amava a poesia. A poesia era a liberdade da sua linguagem. Meu compromisso é manter sua poesia livre, ganhar leitores. Essa é a minha forma de lidar com o luto. Seguir com sua obra, continuar construindo a minha. E transformar, todo o resto possível, em prazer da linguagem.
* Texto reproduzido do jornal Cândido, edição 153, de agosto de 2024, publicado pela Biblioteca Pública do Paraná.
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