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Marcela Dantés – Foto: Foto: Divulgação / Rafael Motta
Todos os jornais disseram, mais de uma vez, que era uma questão de cinco ou seis dias a contar de segunda-feira. Depois, como se porque tivessem errado na primeira vez, desistiram de fazer previsões, não falavam mais, só se dizia que ia acontecer, não quando.
Mas ia.
Já haviam se passado nove dias da segunda-feira, de modo que era de se esperar que não houvesse ali mais ninguém, no máximo, talvez, um casal muito velho de velhos que saberia não fazer sentido algum em abandonar a casa e começar tudo de novo em outro lugar faltando tão pouco tempo para o fim. Dançariam, abraçados, as lágrimas nos olhos, à semelhança dos músicos em um navio que afunda mas onde não se deixa de ter ouvidos. Ou acenderiam o fogo e assariam uma carne vestindo somente a parte de baixo de um pijama, dançando com os braços para cima e chorando ainda. Ninguém lhes veria as lágrimas, entretanto, porque fumaça.
Mas não, as casas não estavam vazias e bastava olhar as roupas estendidas no varal para se dar conta disso. Porque os cachorros que ciscavam do lado de fora poderiam ter sido deixados para trás e ciscavam justamente porque precisavam aprender a comer sem a mão de alguém. Porque a grama verde espalhada entre as casas poderia ser sobrevivente e mais nada, porque o barulho de louça se encostando poderia ser um delírio. Mas a roupa recém estendida nos varais não podia ser nada além da confirmação de que ninguém tinha ido embora dali, porque ninguém foge deixando a roupa limpa para trás.
Também, ninguém lava a roupa com o tempo em suspensão, no ar pesado de um lugar que não deveria, mas vai desaparecer. Ninguém lava a roupa no fim do mundo, mas ali estava a roupa estendida, no varal de um e de outro, lençol, calça, camisa, toalha, outra calça, um macacão de bebê muitas meias de todas as cores e de vários tamanhos, uma dela sem par, onde será que tinha ido parar o outro pé daquela meia? Eles não sentiam o ar? Eles não acreditavam nos jornais? Todos os jornais diziam ele vai acordar, de novo depois de quase mil anos ou algo assim, ele vai acordar e todo mundo tem que sair, tem que ir embora, better run, better run, mais rápido que a lava.
Por vezes a lava é muito líquida e escorre com velocidade de 20 a 50 quilômetros por hora e um homem não, principalmente se estiver carregando nas costas a trouxa inteira de roupas limpas, o lençol, as toalhas, o macacão de bebê. Ou o bebê. Mas ninguém correria, porque não se corre da história, não se deixa para trás uma montanha, um vulcão, a terra que é sua, onde a sua mãe enterrou o seu umbigo e viu crescer um pé de limão, se o limão não vai, ninguém vai também, a lava vai lamber cada um e todos eles, os cachorros, os velhos, os homens com suas enxadas ou o bebê. E o bebê, coitado, que ainda sabe tão pouco, não podia imaginar que o seu nome foi escolhido pela montanha, que nem montanha era, que seu nome combinava com o nome daquele vulcão e que depois deles tantos outros teriam o mesmo nome, mas não ali, não naquelas terras, porque aquela parte do mundo estava prestes a acabar, era uma questão de cinco ou seis dias e depois daquilo tudo que ali nascesse se chamaria cinza e não nasceria outra vez.
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V.S. viveu por oitenta e três anos, dois meses e dezoito dias. Teve dois filhos e uma neta e guardou no fundo da gaveta de todas as mesas de cabeceira que teve nesse tempo a touca de lã que usava na terça-feira em que foi retirado da cama por sua mãe antes que o sol nascesse e antes que alguém abrisse os olhos para se dar conta de que os dois não ficariam ali, como o resto. Mas morreu e sua neta Gabriela, que tinha o mesmo nome que sua mãe, ao esvaziar as gavetas, não soube da utilidade daquele objeto miúdo e encardido, de modo que hoje ele espera qualquer coisa dentro da caixa que diz descarte.
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