A literatura não é apenas arte: é uma forma de pensar o mundo e de intervir nele. Sempre engajada com seu tempo, ela se atualiza a cada leitura e se torna condição para a reflexão crítica e para a vida democrática. Assim, é comum que obras do passado retornem para iluminar dilemas do presente. Quem começa explicando a importância da literatura para a formação crítica do sujeito é o professor Mário Lugarinho, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Para o professor, não há obra que exista fora do diálogo com a realidade que a produziu. “Eu não imagino que não tenha havido literatura que não estivesse, de alguma maneira, engajada com a própria realidade de onde ela surge. Por mais fantasiosa que possa ser, ela surge num meio que demanda aquele texto. Todo texto literário é fruto desse diálogo com a realidade. Mesmo quando ele nega, está dizendo: existe, mas eu não quero tratar desse assunto.”
Mário César Lugarinho – Foto: FFLCH-USP
Ele reforça, também, que a literatura se reinventa cada vez que é retomada pelo leitor. “Há um momento em que o texto é recuperado, é lido novamente e, de alguma maneira, ao ser relido, ele se atualiza. A obra de arte tem esse poder de se atualizar quando é relida, quando o interesse por ela ressurge. E esse interesse aparece porque, de alguma forma, o leitor demanda respostas que talvez aquele texto possa trazer para o seu tempo.” Essa atualização pode atravessar séculos. Lugarinho lembra que a literatura medieval, mesmo distante, foi recuperada em diferentes momentos, de acordo com o que demandava a conjuntura social e política.”
“De repente, reaparece o interesse pelo rei Arthur, pelas narrativas do romance de cavalaria do ciclo arturiano. Essas narrativas floresceram no fim do século 9 e, séculos depois, deram origem ao romance moderno. Algumas de suas características permaneceram, como a figura do herói. Mesmo em um romance como O Guarani, do José de Alencar, vemos Peri inspirado no cavaleiro medieval. É uma forma de atualizar o imaginário e, ao mesmo tempo, responder à demanda de um país em formação, que precisava construir um herói nacional.”
Obras modernas, como O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien, também passam por esse processo. “É um universo completamente fantasioso, sem relação referencial com o tempo presente, mas todo o tempo presente está lá. Tolkien escreve durante a Segunda Guerra Mundial, e mesmo que eu não vá dizer que o Sauron é o Hitler ou que os orcs são os soldados alemães, há um contato direto com aquele contexto. Quando os filmes são lançados, 50 anos depois, já não é mais a guerra, mas o limiar do 11 de setembro. A obra se atualiza, passa a falar de esperança, de superação de adversidades e até da ameaça da tecnologia.”
O professor Francisco Camêlo, também da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, aponta que a literatura tem como um de seus principais papéis sociais projetar futuros possíveis, mesmo diante de realidades difíceis. “Eu penso que uma das provocações que a literatura faz aos leitores de hoje, desse hoje incerto e em crise, é uma aposta na imaginação, na reimaginação da vida. Ainda é possível sonhar, ainda é possível imaginar outras formas de vida, outros mundos. E essas vidas que estão no mundo não estão aí para serem dominadas nem para dominar. Mas elas são a possibilidade de transformação desse mundo. Uma transformação que só será possível a partir de um trabalho coletivo, feito a muitas mãos, a muitas vozes”.
Francisco Thiago Camêlo da Silva – Foto: Lattes
Camêlo destaca a importância da literatura infantil e juvenil nesse processo. “Quando a literatura infantil abre os nossos olhos para o mundo, para as relações de poder, de hierarquia, de injustiça e desigualdade que estruturam a sociedade ela nos faz enxergar que a narrativa histórica está a serviço de um modelo dominante de saber e de poder. Esse modelo silencia, soterra outras histórias, outras vozes, outras vidas. E esse modelo deve e pode ser questionado. Esse questionamento passa por um trabalho de escuta dessas vozes que nunca puderam dizer eu.”
Para o professor, a literatura oferece novos olhares ao assumir a perspectiva da criança. “Nas histórias infantis, muitas delas assumem o ponto de vista da criança, esse ser que possui um tamanho diferente dos adultos, e por isso consegue enxergar aquilo que nós já não vemos ou fingimos que não vemos. A criança, por ser pequena, consegue enxergar as relações de poder, de injustiça, as desigualdades sociais, os invisíveis da sociedade. E é desse ângulo que a literatura nos ajuda a imaginar um outro mundo menos desencantado e menos desigual.”
Além disso, ele aponta a leitura como maneira de resistência aos novos modos de consumo e processamento de informação da atualidade. “Nesses tempos acelerados em que vivemos, em que nós não podemos brincar, nem dormir como deveríamos, a literatura funciona como uma espécie de bolsão de resistência, que instala uma pausa, uma pequena pausa nessa aceleração. É nesse intervalo que conseguimos percorrer outras regiões da experiência humana, que as redes sociais ou outras formas de informação não nos permitem enxergar. Lendo literatura, a gente pode perder tempo. E perder tempo conhecendo outras experiências, outros modos de vida, outros discursos, que a ficção ajuda a reconhecer e a escutar.”
A literatura, contudo, não se atualiza apenas pelas obras que permanecem em circulação: ela também se transforma ao incorporar vozes e perspectivas historicamente silenciadas. Lugarinho lembra que, por muito tempo, a produção literária brasileira foi marcada por um ponto de vista homogêneo, centrado no olhar burguês. “Era muito usual, principalmente no século 19, que tivéssemos obras quase na sua totalidade escritas a partir da sala burguesa, da biblioteca burguesa. Mesmo quando tratavam da diversidade popular, como O Cortiço, havia sempre uma condenação desses personagens, que ao final eram eliminados ou afastados da cena social.”
Carolina Maria de Jesus – Foto: Wikimedia
Essa homogeneidade começou a ser questionada com novas representações das periferias urbanas, mas só se rompeu de fato com a emergência de escritoras negras, como Carolina Maria de Jesus. “Eu arriscaria dizer que uma mudança começa quando encontramos a produção da Carolina Maria de Jesus no início dos anos 1960. Ela apareceu como um fenômeno antropológico, mas não, ela não é um caso antropológico. Ela é um fenômeno literário. E precisava ser estudada como tal”, afirma Lugarinho.
Para o professor, a obra de Carolina abriu espaço para reconhecer um campo específico dentro da literatura brasileira: “A crítica literária começou a lidar com o recorte da literatura de autoria afrodescendente, que até então era muito desconsiderado. Foi preciso reconhecer que há uma produção específica dentro da literatura brasileira, que marca essa autoria, e que precisa ser lida em sua potência estética e política”.
Entre crítica e invenção, a literatura se afirma, portanto, como espaço de resistência, diversidade e futuro: uma pausa diante da velocidade da vida contemporânea, capaz de devolver ao leitor a capacidade de sonhar, questionar e reinventar o mundo.
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