Em meio à piora do mercado de trabalho, aumentam filas em busca de auxílio emergencial e seguro-desemprego (Pref. Caruaru/Reprodução – Montagem RBA)
Uma costureira que durante o dia presta serviço a uma grande loja de roupas e à noite atende em casa. Ou um motoboy que faz entregas por aplicativo e também para a pizzaria do bairro. Os exemplos ilustram a complexa forma de construção da rede de trabalho informal.
Estima-se em cerca de 40 milhões os trabalhadores que atuam na informalidade no Brasil, ou seja, sem carteira assinada nem nenhum tipo de proteção social. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua do IBGE, 39,6% dos trabalhadores do país estão nesta situação.
Assim, o livro “Trajetórias da Informalidade no Brasil Contemporâneo”, lançado na segunda-feira (20) pela Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo, apresenta um debate fundamental para compreender o atual mundo do trabalho. E os desafios para lidar com essa realidade de informalidade que tem o atual Estado brasileiro – ou seja, legislação e governos – como principal promotor.
A obra apresenta os resultados de ampla pesquisa qualitativa feita com 31 profissionais do mercado informal de trabalho de seis categorias diferentes em todo o Brasil: ambulantes, motoboys, construção civil, costureiras, manicures, empregadas domésticas.
A partir desse estudo, artigos inéditos analisam esse quadro, desde as raízes históricas até a conjuntura atual, e procuram apresentar alternativas.
Dois elementos centrais se destacam, segundo a coordenadora da pesquisa, Ludmila Abílio. “O emprego formal não se apresenta como horizonte ou perspectiva central de vida para esses trabalhadores”, afirma.
A informalidade é opção, em alguns casos, inclusive de maiores ganhos na trajetória profissional. “Isso é um desafio para entendermos e pensar como trazer esses trabalhadores para a arena dos direitos, das garantias, das proteções. Entender o que é o emprego formal na vida desses trabalhadores.”
Além disso, as formas de resistência que vão se tecendo individualmente e coletivamente entre esses trabalhadores.
Para a cientista social Léa Marques, organizadora do livro, a pesquisa de 2018 não seria inovadora não fosse o fato de ouvir a fala desses trabalhadores e trabalhadoras sobre sua situação de informalidade.
“É um desafio muito grande ouvir, respeitar e entender o que dizem os trabalhadores. Sem fazer pré-julgamento. Propor mudanças que garantam direitos e não confine mais em guetos”, ressalta sobre a importância do estudo e as formas de utilizá-lo do ponto de vista de quem vai pensar as políticas públicas para geração de emprego e renda, extintas no governo de Jair Bolsonaro.
A maioria dos trabalhadores que vivem na informalidade, sem direitos, são negros, mulheres, da periferia. “A realidade desses trabalhadores é muito ruim. Não há política de emprego e renda. Mas a narrativa que transformou todos em ‘empreendedores’”, afirma Léa Marques, lembrando que ainda há apreço pelos direitos conquistados, mas que é preciso analisar a realidade dos que atuam na informalidade, para reconectar luta pela recuperação desses direitos, com a luta das periferias.
“Ser informal pode significar muitas coisas”, afirma Ludmila Abílio. Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, a pesquisadora avalia que nesse mundo do trabalho em transformação no Brasil, em que a desregulação e as inovações tecnológicas se combinam, os trabalhadores se movem, se atualizam, mas no sentido de novas formas de precarização e desproteção do trabalho.
“Há diferentes tipos de informalidade dentro de uma mesma atividade econômica, assim como o trabalhador pode combinar diferentes estatutos enquanto trabalhador informal”, descreve Ludmila Abílio. “A pesquisa verificou que o motoboy na CLTista, por exemplo, pode ser autônomo, PJ ou MEI, com clientela própria; MEI subordinado aos aplicativos, informal com remuneração fixa, informal com remuneração fixa e entregas.”
O mesmo se dá com a empregada doméstica que pode ser diarista, não registrada, com vários empregadores; mensalista não registrada, mas em condição legal de trabalho, mensalista não registrada em condição ilegal.
“As costureiras podem trabalhar por conta própria, para clientes eventuais ou fixos que não as registram mas as subordinam, estarem em um empreendimento familiar informal que está subordinado a algum outro empreendimento, entre outras condições”, explica a pesquisadora no livro.
“Estas diferentes condições irão definir diferentes condições de trabalho, maior ou menor segurança do trabalhador, diferentes remunerações, diferentes estabilidades do trabalho, assim como diferentes jornadas de trabalho e até mesmo intensidade do trabalho.”
Costureiras informais ou escravizadas nunca trabalham menos de 14 horas por dia (MPT / Agência Brasil)
Daí a importância do debate e da obra lançada hoje pela Fundação Perseu Abramo. É diante desse complexo universo desse mundo do trabalho em constante transformação e precarização que se encontram os desafios para a compreensão na formação da percepção política. De como se situam esses trabalhadores na realidade brasileira. “O momento desafia, principalmente no mundo do trabalho”, diz Ludmila.
“A informalidade vai se firmando como regra a partir da perspectiva do Estado. É o horizonte mais imediato das relações de trabalho e tem o Estado como promotor”, critica a doutora em Ciências Sociais.
Ludmila lembra que as pesquisas qualitativas foram feitas justamente nesse momento de transição. Em 2018, recrudescia o quadro de retirada de direitos. A exploração da mão de obra se agravava diante do desemprego crescente e milhões de trabalhadores migravam do mercado de trabalho formal para o informal.
“A ideia era retratar histórias de vida das categorias em todo o Brasil e de forma representativa entre negros e brancos”, explica a coordenadora da pesquisa que deu base ao livro.
“Foram 18 pesquisadores de todo o país que já trabalhavam com a questão da informalidade. Um roteiro de análise pautou a todos e afinou perspectivas e métodos para que esse material rico pudesse ser alinhado e compor uma visão geral que resultou no livro.”
Desta forma, o perfil socioeconômico, a trajetória de vida, as atividades pelas quais passou desenharam as histórias que demonstram os diferentes tipos de trabalho informal.
O levantamento mapeia, ainda, as atuais condições de trabalho e os agentes promotores da informalidade. Dentre eles, a uberização do trabalho, meicização (MEI), o impacto da reforma trabalhista que promove informalização inclusive do trabalho formal, a viração nas trajetórias da formalidade para a informalidade como gestão da sobrevivência. “A informalidade tece o mundo do trabalho brasileiro”, avalia Ludmila.
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