Fotos: Memorial da América Latina e Freepik
. Existem duas certezas sobre listas. A primeira é que elas causarão discórdia. A segunda é que revelarão mais sobre seus criadores do que sobre o assunto do qual tratam.
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. Com cada curador em seu respectivo quadrado, e aparentemente sem conversar um com o outro, o livro se destaca por sua irregularidade. O critério de escolha dos artistas e discos surge evidentemente pessoal, o que não é necessariamente um problema, mas causa estranheza saltar de uma década para outra e as listas mudarem às cambalhotas. De 20 em 20 anos o que o leitor tem diante dos olhos é uma nova historiografia e uma linha evolutiva diferente da música popular latino-americana, nas quais fundadores não produzem discípulos, aprendizes não encontram mestres e ausências inexplicáveis saltam no tempo para emergir como presenças inconcebíveis.
. O problema não é do time de curadores – cada um carregando sua própria bagagem musical e competente para costurar seu próprio parangolé da música da região –, mas da colcha de retalhos que o trabalho (des)conjunto produz. Todos os nomes têm gabarito e é louvável o esforço de misturar o conhecimento acadêmico ao prático, o saber jornalístico ao conteúdo dos bastidores. Mas faltou mesmo fazer de tudo isso uma geleia geral, relembrando Gilberto Gil e Torquato Neto.
. Cabe a Waldenyr Caldas, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e pesquisador da música popular, tratar dos primeiros 20 anos, o intervalo entre 1922 e 1941. Logo de cara o primeiro ruído: o próprio Caldas anuncia que não apresentará os discos mais importantes do período, já que o long-play (LP) ainda não havia sido criado. Com isso, o professor traça um apanhado histórico abrangente de artistas, compositores e músicas da época, em um dos maiores esforços de internacionalização do livro, que pouco a pouco vai agigantando a presença brasileira na lista.
. Com Caldas, apenas Noel Rosa, Ary Barroso, Pixinguinha e Braguinha representam o Brasil. Ganham destaque Libertad Lamarque, cantora de Caminito, um dos tangos prediletos de Jorge Luis Borges, Carlos Gardel, o maior intérprete das canções argentinas, e Ignacio Corsini, parte do panteão dos grandes cantores do tango. Da Bolívia, o pesquisador resgata Alberto Ruiz Lavadenz e sua Lira Incaica, especializados em temas indígenas andinos. Bienvenido Granda, autor de Perfume de Gardênia, coloca Cuba e o bolero na lista.
Carlos Gardel e Pixinguinha – Foto: Reprodução/Memorial da América Latina
Gravado em 1942 por Carlos Gardel, La Cumparsita não internacionalizou definitivamente apenas a música argentina”, escreve Waldenyr Caldas. “No plano artístico, cultural e musical deu a justa e merecida projeção a esta nação, que passaria a ser mais conhecida e visitada por grande número de turistas, especialmente da América e Europa, que desejavam conhecer melhor este país. Não por acaso, esta canção, no decorrer do tempo, ganhou o status de ‘hino’ dos tangos. De longe, é a canção mais gravada e difundida em todo o mundo, com aproximadamente 2.550 gravações, entre elas nos idiomas japonês e finlandês”. . Sobre Carinhoso, de Pixinguinha e Braguinha, Waldenyr Caldas comenta que “a canção tornou-se uma espécie de ‘hino dos enamorados’, atravessando gerações e chegando aos nossos dias com a mesma força dos anos 1930”. Para o pesquisador, sua atemporalidade reside em “uma estreita relação harmônica entre a melodia, um tipo de samba estilizado que lembra muito bem o ritmo de valsa, e o texto poético extremamente romântico, que nos remete imediatamente à ideia de uma pessoa apaixonada”.
Gravado em 1942 por Carlos Gardel, La Cumparsita não internacionalizou definitivamente apenas a música argentina”, escreve Waldenyr Caldas. “No plano artístico, cultural e musical deu a justa e merecida projeção a esta nação, que passaria a ser mais conhecida e visitada por grande número de turistas, especialmente da América e Europa, que desejavam conhecer melhor este país. Não por acaso, esta canção, no decorrer do tempo, ganhou o status de ‘hino’ dos tangos. De longe, é a canção mais gravada e difundida em todo o mundo, com aproximadamente 2.550 gravações, entre elas nos idiomas japonês e finlandês”.
. Sobre Carinhoso, de Pixinguinha e Braguinha, Waldenyr Caldas comenta que “a canção tornou-se uma espécie de ‘hino dos enamorados’, atravessando gerações e chegando aos nossos dias com a mesma força dos anos 1930”. Para o pesquisador, sua atemporalidade reside em “uma estreita relação harmônica entre a melodia, um tipo de samba estilizado que lembra muito bem o ritmo de valsa, e o texto poético extremamente romântico, que nos remete imediatamente à ideia de uma pessoa apaixonada”.
. Há também espaço para José Asuncíon Flores, paraguaio responsável pela criação do ritmo conhecido como guarânia e autor de Índia, canção incorporada ao repertório sertanejo brasileiro. A Guatemala também é lembrada, com Martha Bolaños de Prado e Paco Pérez, assim como o México, representado por Carlos Chávez. Há espaço ainda para os equatorianos Los Nativos Andinos e Carlotta Jaramillo.
. Juca Novaes é o próximo curador do volume, responsável pela música de 1942 até 1961. Cantor, compositor, produtor, advogado especializado em direito autoral e criador do grupo Trovadores Urbanos, Novaes inicia a fagocitação brasileira da lista, reservando metade dos seus escolhidos para o Brasil. Aqui, pelo menos, os discos prometidos no título da publicação começam a aparecer.
. Apesar da prevalência brasileira, o panorama internacional do curador não deixa de interessar. Abre com Afro Cuban Music (1947), primeiro LP a registrar a fusão de ritmos afro-cubanos, jazz e arranjos de big band, experimentos gestados por Miguelito Valdés e Machito e seus Afro-cubanos desde o início dos anos 1940 e conhecidos como cubop. Segue para Sones of Mexico (1950), LP de dez polegadas do Trio Aguilillas, responsável pela divulgação da música regional mexicana. Daí segue para Una Voz y Una Guitarra (1953), primeiro disco do argentino Atahualpa Yupanqui, grande pesquisador de música folclórica e admirado por Elis Regina, que registrou sua canção Los Hermanos no álbum Falso Brilhante (1976).
. Do venezuelano Aldemaro Romero temos Dinner in Caracas (1954), trabalho lançado nos Estados Unidos e que se propôs a modernizar a música folclórica da Venezuela, apresentando-a com versões orquestrais completas. Da América do Sul, Novaes resgata também Mambo! (1954), obra da peruana Yma Sumac, dona de uma voz extraordinária e um disco quase experimental, no qual sons da floresta tropical parecem surgir de sua boca. Dentre os demais selecionados, há ainda espaço para a chilena Violeta Parra e seu Cantos de Chile (1956), registro parisiense de canções folclóricas gravadas apenas com violão e voz, e o rei do mambo Tito Puente, estadunidense de origem porto-riquenha responsável por Dance Mania (1958).
. Quando trata do Brasil, Novaes apresenta nomes consagrados da historiografia da música popular brasileira, trazendo alguns dos álbuns que encabeçam listas de melhores da história. É o caso de Canções Praieiras (1954), de Dorival Caymmi, A História do Nordeste na Voz de Luiz Gonzaga (1956), Saudosa Maloca (1957), dos Demônios da Garoa, Canção do Amor Demais (1958), de Elizeth Cardoso, e Chega de Saudade (1959), de João Gilberto.
. Willy Verdaguer, músico, maestro e arranjador argentino radicado no Brasil, é quem compõe a lista de 1962 até 1981. Fundador do grupo Raíces de América, Verdaguer também integrou os Beat Boys – grupo atuante com os tropicalistas durante a época dos festivais – e participou da gravação de discos dos Secos & Molhados. Com isso, o músico carrega a seleção com lembranças oriundas de seu próprio testemunho ocular e oferece um recorte particularíssimo do período.
. É assim que aparecem na lista o disco de estreia dos Mutantes (1968), Tropicália ou Panis at Circensis (1968), Acabou Chorare (1972), dos Novos Baianos, o primeiro dos Secos & Molhados (1973, mas datado erroneamente como 1978 no livro), Falso Brilhante (1976), de Elis Regina, e o próprio Raíces de América (1980). Também estão lá os onipresentes Construção (1971), de Chico Buarque, Clube da Esquina (1972), de Milton Nascimento e Lô Borges, e Gita (1974), de Raul Seixas, além dos excelentes, porém menos badalados, Revolver (1975), de Walter Franco, e A Página do Relâmpago Elétrico (1977) de Beto Guedes.
. O repertório internacional de Verdaguer traz Santana (1969), primeiro disco do guitarrista mexicano Carlos Santana, Adiós Nonino (1972), do argentino Astor Piazzolla, e Santa María de Iquique (1970), cantata popular do grupo folclórico chileno Quilapayún, que trata da história verídica de um massacre contra trabalhadores ocorrido em 1907. O curador inclui também Artaud (1973), disco da banda Pescado Rabioso, liderada pelo pioneiro do rock argentino Luis Alberto Spinetta, e La vida no vale nada (1976), do cubano Pablo Milanés, cuja Canción por la Unidad Latinoamericana se tornou hino das esquerdas e mereceu gravação nas vozes de Milton Nascimento e Chico Buarque. Encontramos ainda a presença da argentina Mercedes Sosa, com seu álbum ao vivo gravado no Brasil (1980), e Rubén Blades e Willie Colón, o primeiro panamenho, o segundo estadunidense de origem porto-riquenha, autores de Siembra (1978), um dos discos de salsa mais vendidos da história.
. Barone abre os trabalhos com Yendo de la Cama al Living (1982), a estreia solo do ídolo argentino Charly García, álbum lançado na ressaca da infame Guerra das Malvinas e nos espasmos finais da ditadura militar instalada em 1976. Vai então para o Chile, com o seminal La Voz de los 80 (1984), outra estreia, dessa vez de Los Prisioneros, punk rock com críticas explícitas ao governo ditatorial de Pinochet. Segue novamente para a Argentina com Nada Personal (1985), do Soda Stereo, uma das bandas de rock latino de maior popularidade e influência no continente (exceto no Brasil, onde infelizmente tratamos a diferença de idiomas como nosso muro de Berlim cultural).
. A lista continua com os mexicanos Los Lobos em La Bamba (1987), trilha sonora do filme que conta a história de Ritchie Valens, um dos pioneiros do rock nos anos 1950. Passa para El Amor Después del Amor (1991), de Fito Páez, simplesmente o disco de rock mais vendido da Argentina, e volta para o México com Avalancha de Éxitos (1996), do Café Tacvba. Os brasileiros surgem timidamente com Lado B Lado A (1999), do Rappa, e Bloco do Eu Sozinho (2001), dos Los Hermanos.
. Mas dizer que Barone pinça apenas o rock latino-americano na sua seleção seria injustiça. Aparece também Bachata Rosa (1990), de Juan Luis Guerra, músico da República Dominicana que representa a música tradicional caribenha e emplacou o hit Borbujas de Amor, com versão brasileira gravada por Fagner. Outra artista de vendagens astronômicas na lista é a colombiana Shakira, com seu terceiro álbum, Pies Descalzos (1995), responsável por seu sucesso internacional capitaneado pela canção Estoy Aquí. Mais um mega star escalado pelo baterista é Rick Martin, que com Vuelve (1998, mas creditado mais uma vez erroneamente como 1990) gravou o tema da Copa do Mundo de 1998, La Copa de la Vida. Barone também não esquece o álbum coletivo Buena Vista Social Club (1997), o histórico resgate dos artistas da música tradicional cubana.
. Quem encerra o livro é Felipe Machado, jornalista, escritor, músico e um dos fundadores da banda Víper. Machado recebe a cítrica tarefa de falar do presente, quando não existem cânones e toda relação de “melhores”, “mais importantes” ou “mais representativos” é uma aposta arriscada, pronta para caducar daqui a alguns anos ou transformar seu formulador em visionário. Em sua escolha predomina a diversidade de estilos, contudo, mais uma vez, a ênfase tomba para o Brasil (são 14 álbuns do País).
. É assim que o samba começa a seleção, com Deixa a Vida me Levar (2002), de Zeca Pagodinho, e segue para Tribalistas (2002), projeto de Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos Brown que se tornou um fenômeno não só no Brasil, mas também em Portugal, Itália e Espanha. A mistura de rap e samba produzida por Marcelo D2, egresso do Planet Hemp, é lembrada com À Procura da Batida Perfeita (2003), e outra fusão – desta vez, dos timbres eletrônicos com influências da bossa nova – aparece em Céu (2005), disco homônimo da cantora paulistana.
. Esforços contemporâneos de artistas consagrados da MPB dão as caras na lista de Machado. É o caso de Cê (2006), a aventura rock-based de Caetano Veloso, Estudando o Pagode (2005), continuação experimental do clássico Estudando o Samba (1976), de Tom Zé, e A Mulher do Fim do Mundo (2015), a consagração definitiva de Elza Soares, que já era mais do que consagrada e, mesmo sem precisar provar nada para ninguém, gravou um clássico imediato da música brasileira.
Fotos: Reprodução/Memorial da América Latina
. Mas Machado também não se esquece de quem surgiu há menos tempo no cenário e, com isso, provoca o leitor a reconhecer ou refutar seus escolhidos. É aí que entram Anitta (2013), disco de estreia da cantora carioca que se tornou a mais ouvida do mundo no Spotify, AmarElo (2019), o hip-hop lírico de Emicida, embalado pelas rimas de Belchior, e Todos os Cantos – vol. 1 (2019), álbum polvilhado de singles de Marília Mendonça, rainha do sertanejo feminista que se foi deixando muita coisa ainda por fazer.
. Dos internacionais, o jornalista destaca, entre outros, Revolución de Amor (2002), dos mexicanos do Maná, outro álbum de Fito Páez, Naturaleza Sangre (2003), e Eco2 (2005), do uruguaio Jorge Drexler, autor de Al Otro Lado del Río, tema do filme Diários de Motocicleta e primeira música em espanhol a ganhar o Oscar de melhor canção original.
. Fabrício Ravelli, diretor de Atividades Culturais da Fundação Memorial da América Latina e autor da introdução ao livro, escreve que o leitor poderá questionar os álbuns incluídos na listagem. Diz que, se isso acontecer, o objetivo foi alcançado. Pleno acordo. A melhor função de listas de “melhores”, “maiores” e “definitivos” é estimular nossa própria imaginação e instigar o debate. Nesse ponto, o papel do volume está pago. Mas, justamente, por isso, uma iniciativa desse porte merecia um pouco mais de cuidado curatorial e editorial. Quem sabe em uma segunda edição?
. Latinidades – 100 Anos em 100 Discos, Memorial da América Latina, 136 páginas. Disponível em breve no site do Memorial.
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