Nuno Félix da Costa – Imagem: captura de tela
Só um náufrago sente plenamente a imensidão — trezentos e sessenta graus de mar.
Ao longo do dia, dezenas de vezes rodou à procura do barco que poderia salvá-lo.
Nada, por enquanto.
Nem o vento roda: sempre sudoeste.
Qual a probabilidade de um tubarão aparecer?
A consciência passa rapidamente de questões concretas prementes como esta para outras de uma grande abrangência em que o seu lugar no universo toma uma singularidade única.
Como um grande vaidoso, apenas ele conta no seu precário ecossistema.
De que lhe servem as células da pele não se dissolverem na água salgada, que adianta a vida do seu corpo resistir um pouco mais se a sua localização no meio do oceano é incompatível com um destino?
Afigura-se-lhe um ponto final num poema que não estaria acabado, mas os finais acontecem, inesperados, como os inícios.
Estava numa cena amorosa, um pouco alcoolizado, quando o empurraram.
Sentiu uma lucidez brutal ainda durante a queda.
Cerebralmente vence-se o medo (a linguagem fecha-se num ovo de chumbo); o pensável é um indizível trajeto óbvio.
Tenta acreditar que será salvo porque teve merecimento a sua vida e, embora sendo agnóstico, acredita numa ordenação dos acontecimentos na qual a sua existência tem um lugar.
Entretanto, ensaia a minimização dos movimentos necessários à flutuação, a sua consciência, o eixo de uma hélice que faz rodar o mundo num sentido.
Neste momento, ele na imensidão, ainda pensa o sentido, testemunha bem as artificialidades do cérebro.
Não é um órgão com que possamos contar se queremos ser salvos, náufragos no meio do oceano.
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