Este livro [No lugar da leitura: biblioteca e formação”] traz quatro textos que, de forma mais ou menos direta, dissertam sobre leitura e biblioteca. Todos são fruto de intervenções a que fui chamado a realizar em diferentes fóruns de discussão sobre o tema. Refletem, para além de minhas percepções e concepções de leitura e formação, a aprendizagem que tive pela convivência com pessoas de pensamento agudo e extremamente comprometidas com a defesa e a promoção do direito de ler, especialmente Elizabeth Serra, Silvia Castrillón, Christine Fontelles, Glaucia Mollo e Fabíola Farias.
Em mais de uma ocasião, quando intervinha em algum seminário, às vezes contundentemente, contra o que me parece ser uma banalização do debate, tive nelas uma interlocução capaz de fazer-me ver a atualidade e a necessidade da biblioteca como possibilidade objetiva de produção e disseminação da cultura e do conhecimento, de formação intelectual e política, de experimentação estética e afirmação subjetiva.
Mas essa possibilidade, ressalte-se, implica a radical e intransigente crítica tanto ao pragmatismo ideológico que, compreendendo a promoção da leitura como adequação ao padrão produtivo, ao mundo da eficiência e da competitividade, trata de medi-la e justificá-la em termos de retorno de investimento, de valor agregado, de ordem estabelecida, quanto ao idealismo ingênuo que, crendo que as consciências se formam simplesmente pelo estímulo à livre leitura de textos cativantes, quer promover leitura como quem faz caridade ou propala sonhos.
Afirmar o valor e a necessidade da oferta pública e ampla de livros é obviedade e resulta do trivial reconhecimento de que o alfabetismo é condição de inserção na ordem social contemporânea, e que saber e poder interagir com desenvoltura a diversidade de objetos culturais que se oferecem por meio da escrita qualifica a pessoa profissional e politicamente.
Também é obviedade a afirmação de que a leitura, destacadamente a literária, é fonte ímpar de experiência estética, de expansão libidinosa e de afirmação subjetiva, e isso de uma maneira em certa medida distinta das muitas outras formas de interação com a cultura e com a arte.
Contudo, submetida à pedagogia da eficiência ou subsumida à indústria do entretenimento – reduzida, portanto, aos ditames do cálculo da produtividade e da adequação –, a lei- tura perde sua força criativa e heurística. Produto humano, ela sintetiza o esforço dos homens de, em sua lida cotidiana, em seus conflitos e interesses, produzir a própria existência: saber e poder ler é saber e poder dar conta desse processo, de suas causas, formas, consequências; é saber e poder indagar para além das aparências e reagir para além de estímulos.
Devo dizer que, assim como me incomoda isso de ficar propalando a ideia de que para ler basta querer, que ler é gostoso, divertido, instrutivo, incomoda-me a ideia de biblioteca em que se prevalece o gesto fácil, fruto do simples querer ler, o lugar de qualquer tempo e de aprendizagem automática pelo simples contágio. Conformado pelas formas de ser da cultura e da história, o sentido da leitura, assim como o sentido da arte, da ciência e da filosofia, não lhe é intrínseco nem brota de boas vontades: ele se põe pelo incômodo de existir que se insinua na gente, pela desordem do mundo, pelas tensões do tempo, pela miudeza de ser.
A biblioteca, percebida como lugar de encontro da gente com arte, com ciência, filosofia, história, lugar social, político, não é, de modo nenhum, um lugar neutro. É um lugar incomum, lugar que seleciona e exige, que pressupõe uma pessoa capaz de operar com discursos complexos e distante das formas e saberes aprendidos na vida prática; disposta a deixar-se estar sem tanta pressa, a compenetrar-se, a experimentar-se o silêncio. Há muitos lugares ruidosos e divertidos em que se pode estar para entreter-se, lugares de alegre dispersão e riso, em que a pessoa se despreocupa, brinca e esquece. É bom que haja também algum lugar em que se possa pensar, imaginar, indagar vagarosamente os modos do mundo, da vida, da gente.
E ser reflexivo é gesto que se aprende. Por isso mesmo, a biblioteca demanda formação permanente e deve ter como princípio formar o leitor, contribuindo para a contínua superação de seus limites. Sua medida de valor está, não no tamanho de seu acervo, na quantidade de atendimentos, na diversidade de promoções ou na modernidade dos recursos – mesmo que tudo isso seja desejável –, mas no quanto contribui para o adensamento da cultura, da disseminação do conhecimento e a afirmação da consciência individual e coletiva – enfim, para a formação do leitor.
Não se infira do que disse acima nenhum gosto nostálgico ou fixação em momento outro da história. Nada de construções vetustas, emadeiradas, revestidas de estantes sobre estantes; isso é a ordem de um outrora. A biblioteca moderna quer ser dinâmica, flexível, integrada, informatizada, conectada; quer ser democrática e assistir gente de toda estirpe; quer estar disponível e acessível. E, sendo diversas as possibilidades de leitura e diversos os públicos, ela se estruturará de forma a dar conta dessa diversidade, respeitando os tempos e dinâmicas de cada um e desdobrando os espaços e acervos. Mas sempre tendo como princípio a formação, o encontro com o conhecimento, a introspecção criativa.
Apesar do paradoxo, é necessário reconhecer que uma biblioteca que, para ser de todos, ignora o esforço que ler exige e concentre-se em fazer fácil e óbvia a leitura não será lugar de encontro com a cultura, a arte e o conhecimento. Não será uma biblioteca. Sei do incômodo que pode trazer tal posicionamento, principalmente porque sugere uma perspectiva excludente e elitista, ainda que não o seja. A inclusão está em a gente ter o poder de dizer, pensar, criar. A exclusão ocorre quando se mantém o mundo – e as pessoas que são nele – na distração, no engodo e na ignorância.
Para terminar, transcrevo as palavras que disse à campanha “Eu quero minha biblioteca”, quando indagado qual a biblioteca dos sonhos.
Eu me pergunto para que serve a biblioteca, o que é a biblioteca. Muitas vezes, as pessoas acham que a biblioteca tinha que ser um lugar que… como se fosse uma feira, uma festa, alegre, que atraísse todo mundo. Eu creio que a biblioteca precisa ser um lugar de recolhimento, um lugar bem-vindo, lugar agradável, onde vou para estar, vou para ler, vou para encontrar-me, recolher-me, refletir, silenciar, imaginar… um lugar que vou para, acima de tudo, me sentir bem comigo e poder perguntar sobre mim e sobre a vida, estudar… É um lugar que – se não todo ele, não precisa ser todo – tem também de ter o silêncio do encontro, o silêncio gostoso e agradável, em que alguém com o livro pode encontrar-se consigo, com o outro e pensar o mundo, a vida, e indagar a existência, sonhar, fantasiar – fantasia de que tanto falava Bartolomeu Campos de Queirós. Um lugar de ser, um lugar de estar.
_____________________________Percival Lemes Britto (*) é linguista, escritor, professor doutor da Universidade Federal do Oeste Pará, integra a campanha “Eu Quero Minha Biblioteca“. Atua há mais de 30 anos no campo da leitura e formação de educadores.
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