O conteúdo especial se propôs a resgatar as perspectivas das mulheres, que são frequentemente invisibilizadas e não reconhecidas pelo papel essencial que tiveram nessa luta, mesmo que tenham enfrentado a opressão, as torturas físicas e psicológicas, o machismo, a gestação e a criação dos filhos, além de terem sedimentado estrategicamente as ações de combate ao regime.
A série ainda traz questões que o jornal considera importantes para a construção da cidadania brasileira e fortalecimento da história do país, como o resgate da memória, a consciência inequívoca dos fatos e o registro testemunhal das pessoas que viveram neste período, com toda a veemência necessária para solidificar uma sociedade mais justa, humana e possível.
Foram publicadas, pela ordem de periodicidade do jornal: Teresa Urban, Elza de Oliveira Filha, Elisabeth Fortes, Maria Amélia de Almeida Teles, Marise Manoel, Sonia Lafoz, Rosane Vianna, Almira Maciel, Noemi Osna e Sueli Bellato.
Essas mulheres representam todas nós, mulheres, as que vieram antes delas, as que estiveram ali, as que estão aqui, as que virão e as que não puderam estar.”
Marianna Camargo (Editora do Jornal Cândido)
Sueli Bellato – Foto: CNLB Conselho Nacional do Laicato do Brasil
30 de abril de 1964 foi um dia cinzento, conta Sueli Bellato. E estranho. Primeiro, foram os inúmeros vagões transportando carros-tanque que ela viu a caminho da escola. Depois, ao chegar lá, não teve aula. Alguma coisa estava acontecendo, mas, aos 11 anos, ela não entendia exatamente o quê.
A compreensão não tardou. Ainda adolescente, a paulistana filha de operários e moradora da periferia conheceu a Pastoral Operária e se envolveu com a Pastoral da Juventude. Nas ações dos grupos, além de ver mais das contradições da realidade brasileira, teve contato com as violências do regime e começou a trilhar seu caminho como militante dos direitos humanos, o que envolveu a escolha pela vida religiosa e a formação em direito.
Inicialmente, atuou no movimento urbano na região de São Miguel Paulista, na Zona Leste de São Paulo. Depois, mudou-se para a Paraíba, onde atuou como advogada em uma região canavieira e acompanhou o caso da camponesa e líder sindical Margarida Maria Alves, assassinada a mando de latifundiários da região. A partir dali, dedicou anos ao movimento rural e ao combate à violência no campo, em diferentes estados do país.
No início dos anos 1990, foi convidada para trabalhar pelos direitos humanos em Brasília, primeiro na Procuradoria Geral de República e depois na Câmara dos Deputados. Em 2003, chegou à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, onde foi vice-presidente e conselheira — e, por mais de uma década, envolveu-se diretamente com pedidos de desculpas e concessão de indenizações a perseguidos políticos da ditadura.
Ao Cândido, Sueli conta um pouco sobre sua experiência como militante de direitos humanos e, a partir das recentes ameaças à democracia, analisa o trabalho feito para lidar com as consequências da ditadura.
Quando o Golpe aconteceu em 1964, você era uma criança. O que fez você perceber exatamente o que era a ditadura e como ela ameaçava os direitos humanos?
Foi a minha participação, já como advogada, ainda jovem, recém-formada, nas casas e prisões, no movimento grevista.
De 1964 até 1979, era praticamente impossível fazer greve, elas eram fortemente reprimidas. Mas teve uma greve famosa, de Osasco [em 1968], e [no movimento operário e no sindicalismo] que tem uma proeminência anterior a São Bernardo do Campo. E o que fazia com que Osasco e depois São Bernardo tivessem essa força? Era o movimento da Pastoral Operária.
Eu acho que a Pastoral Operária realizou um papel muito importante na Igreja, de conscientização, de envolvimento. Então, ter vivido nessa Igreja comprometida com os pobres e desejosa de se libertar da ditadura militar, ter tido um Dom Paulo Evaristo Arns, um Dom Luciano Mendes… O time que tínhamos aqui em São Paulo era muito forte e isso acabou contribuindo na nossa formação e no enxergar as contradições, que não era só uma questão de medo do comunismo — isso era um pretexto! Era uma proposta de não se aproximar de nenhum modelo que trouxesse uma capacidade crítica maior e um desejo de libertação, era um medo de libertação social, econômica e política.
E como foi para você, uma mulher jovem e recém-formada, a experiência de militar pelos direitos humanos em plena ditadura? Você sofreu violências? Houve alguma diferença por ser religiosa?
Eu nunca fui presa, nunca fui também atrás da minha folha da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), do que os serviços de segurança e informação pensavam da minha militância, mas as restrições e censuras que eu sofri acho que foram comuns às mulheres que exerciam o mesmo tipo de atividade que eu.
Eu não vejo que eu tive nem privilégio nem desvantagem por ser religiosa, porque eu nunca me coloquei dessa forma. No caso Chico Mendes, por exemplo, fui como advogada, não coloquei nenhuma identificação que me desse algum tipo de proteção ou de privilégio. No Movimento Sem Terra também, todo mundo sempre soube que sou freira, mas ninguém me colocou num lugar diferenciado.
Então, se eu sofria machismo, sofria como as outras mulheres. Se sofria autoritarismo, sofria como outras mulheres. Se sofria piadinha de delegados de polícia e ameaças, as outras mulheres na minha situação também sofriam.
Considerando toda sua experiência com a ditadura militar, como você define aquele período para as pessoas e para o país?
Foi como se estivéssemos submetidos a uma inanição. Não podíamos reagir a tudo que acontecia.
Aliás, estou lembrando agora que estamos falando. Deveria ter uns 13 anos, já estava no ginásio na época, e eu sempre usei óculos — sempre usei e nunca gostei de usar, sempre esquecia meus óculos em algum lugar.
E num período em que não tinha ginásio na proximidade da minha casa, estudei em um distante, à noite, e esqueci meus óculos embaixo da carteira. Logo cedo, eu voltei para localizar meu óculos. Quando estou passando em frente à delegacia do bairro, a uma distância de quase 300 metros de mim, os policiais jogam um homem de dentro da delegacia na rua, todo machucado. Aquilo é um retrato que nunca saiu da minha cabeça, da época da ditadura. Possivelmente, esse homem foi preso por crime comum, alguma coisa que ele tenha praticado ou até que não tenha praticado, mas essa arrogância das instituições só cresceu, esses males só cresceram, porque nós não podíamos reagir, estávamos impedidos e coagidos. A pessoa que fizesse qualquer reclamação poderia desaparecer para não se ter mais notícias, ou reaparecer tempos depois muito machucada. Então, passamos um tempo da nossa vida sem conseguir entender o que estávamos vivendo.
Foto: Pedro França / Agência Senado, 2016 | Edição Cândido
Acho que o nosso nível cultural — com ressalvas e exceções, pessoas que tiveram mais possibilidades por caminhos vários — nunca foi de um povo que fizesse muita crítica da realidade. Somos um caldo de situações que, por muito tempo, nos deixou mudos, com pouca capacidade de responder. Falamos de 1964 a 1985, mas, na verdade, nós somos resultado de muitos outros golpes. Já tínhamos vivido golpes, como no Estado Novo, a nossa história é muito conturbada. E nunca soubemos que os golpes que aconteceram no país resultaram em uma responsabilização. Parece que dar golpe dá certo, né? Se chega no 8 de janeiro muito facilmente nessa linha de pensamento. “Deu certo lá atrás, pode dar certo de novo, né? Então, vamos fazer o que pensamos que tem que ser feito, porque nunca ninguém foi preso no país porque deu golpe”. E agora se pede anistia para quem destruiu todos os poderes — e mais: tentou destruir o pouco que a gente conseguiu alicerçar da democracia. Isso é mais grave ainda e eles nem enxergam o tanto de mal que fizeram não só para eles mesmos, mas para as futuras gerações, projetando uma ideia que estabelecer autoritarismos dá certo.
Aproveitando que você tocou nesse ponto: no ano em que o Golpe de 64 completa 60, temos a revelação de que havia outro plano de golpe se encaminhando. Em que pontos falhamos como Estado e sociedade para chegarmos nessa situação de novo?
Na minha experiência na Comissão de Anistia, que julgo que foi uma das mais positivas que eu vivi, fizemos movimentos muito elitistas, muito para nós mesmos. Não conseguimos dar uma abrangência maior para aquele jovem que a gente, às vezes, supõe que não está ligado ou que não está interessado. Nem tentamos e nem conseguimos, de alguma forma, furar esse pensamento nosso de achar que não valia a pena tentar conversar principalmente com juventude. Então, a juventude acabou se acostumando a não ter um papel, nem nada a fazer, ao ponto de negar que tivemos uma ditadura nesse país. O desconhecimento é tão grande que se chega à ousadia de dizer que nós não tivemos uma ditadura.
Vemos no depoimento dos jovens, na falta de interesse, na alienação, no tipo de consumismo que experimentamos.
Então, creio que não trabalhamos e não temos trabalhado suficientemente a alfabetização política, não dialogamos com jovens, porque achamos que eles não estão interessados ou até por uma ingenuidade, porque quisemos poupar a juventude das atrocidades do passado e isso também foi equivocado, porque a gente não evita o sofrimento do outro escondendo a verdade.
Mas nem tudo está perdido. Têm muitos grupos de jovens que estão reagindo. Não quero generalizar que a juventude é alienada, mas quero dizer que nós, mais velhos, deixamos muitas vezes de ter um papel mais pedagógico ou mais propositivo com jovens e deixamos de dialogar suficientemente.
Em relação ao trabalho da Comissão de Anistia, o que faltou?
Acho que faltou — e até cheguei a ter alguns embates com meus colegas — dizer: “Eu vou lá para o Recife fazer uma Caravana da Anistia, mas eu não vou fazer para, eu tenho que fazer com”, ou seja, tenho que fazer junto com os atores que atuam nessa cidade, nesse estado. Muitas vezes, com a maior boa vontade, porque isso não foi planejado para dar errado, não enxergamos que se a gente fizesse sozinho também acabaríamos sozinhos, sem a retaguarda da população.
Estou lembrando a questão indígena. Estive junto com os suruís lá no Pará, mas quem estava junto comigo? Era só o Ministério da Justiça. Aí falhou e está falhando. É engraçado e parece ruim falar sobre o que eu errei, porque parece que vou ficar mais vulnerável, mas não, podemos ficar mais fortes quando reconhecemos que poderia ter sido diferente e que, ainda hoje, a Comissão cumpre um papel muito importante, com a oportunidade de fazer diferente e não repetir os erros que cometemos no passado.
Qual a importância desse trabalho, dessa reparação, de forma ampla, mas para você também? Hoje estamos falando muito do caso Rubens Paiva, em razão do filme. Algum caso específico te marcou ao longo dos anos trabalhando na Comissão?
É, você veja… mesmo no caso da história da Eunice Paiva, fica a pergunta se ela foi reparada, porque demorou tanto tempo, nunca apareceu o corpo do Rubens Paiva. Enquanto tiver arquivos sendo negados, enquanto tiver informações sendo sonegadas, eu acho que é impossível ter reparação.
O de menos é essa reparação econômica, que é muito simbólica. Imagine, ainda que desse R$1 milhão na mão da família da Eunice Paiva, o que traria de volta todo o prejuízo que eles sofreram com a ausência do pai em tudo que eles viveram depois? Todas as ausências, todo o momento de vestir a camisa do pai que não existiu mais, a mudança abrupta que eles tiveram que fazer.
Para mim, tem muitos casos que me marcaram. Um deles — que também acho que não teve uma reparação, acho que, no fundo, nenhum deles tem reparação na proporção do que eles sofreram — foi o caso da Rose Nogueira, jornalista da Folha de S. Paulo, que tinha ligação com os Dominicanos que estavam presos.
Ela tinha tido bebê há oito, dez dias. A polícia invade a casa dela, ela é presa e estupidamente torturada. Tinha a questão do leite materno, então eles aplicam uma injeção para secá-lo. Passam o tempo todo ameaçando que vão dar o neném dela, aí chamam os sogros, a quem tinham entregue a criança, para visitar a Rose. Os sogros iam com a criança, passavam o dia na delegacia aguardando e, no fim do expediente, eles diziam: “Não, hoje vocês não vão vê-la”. Foram dias dessa tortura que ultrapassou a pessoa dela, atingiu os sogros, o marido, o neném de uma forma tão cruel que você imagine se qualquer reparação que ela pudesse ter recebido poderia repor tudo isso que ela viveu.
Isso é um caso, tem outros tantos que me marcaram muito, me deixaram uma pessoa muito sensível…
Então, acho que essas reparações são muito mais simbólicas do que é possível alcançar.
Mas são necessárias?
São necessárias, porque têm um efeito pedagógico, para dizer que isso nunca mais pode acontecer. Agora, a falta de punição, a falta de abertura dos arquivos… Eu não acredito que alguém tenha destruído os arquivos, principalmente os que estão nas Forças Armadas. Ninguém destrói provas que podem lhes servir. E a história de não revelar onde estão os corpos… Onde está Rubens Paiva? Onde está o Honestino Guimarães? Onde está Fernando Santa Cruz? São muitas pessoas e muita falta de resposta. E eles têm!
Quando tem a operação do Araguaia que deslocou mais de 8 mil homens para aniquilar 80 jovens, você tem as folhas dos cadastros dos pontos, de quem se deslocou para aquela região. Por que essas pessoas nunca foram ouvidas para dizer o que fizeram na Serra das Andorinhas com os corpos?
Quando eu fiz parte de algumas sessões da busca de desaparecidos do Araguaia, a gente ainda encontrava latinhas daquelas de carne de porco. Aquilo tinha demais na Serra das Andorinhas há dez anos e era o alimento que os americanos mais mandavam para o exército do Brasil.
Aliás, qual a participação que os EUA tiveram? Vamos ficar acreditando que só foi a pressão do Lincoln Gordon, embaixador da época? Que não teve outras atuações empresariais, civis, militares dos EUA no golpe tanto do Brasil quanto do Chile e de outros países?
É isso que eu penso: tem um chão para a gente trabalhar, que podemos rever nossos currículos escolares, chega de contar história da carochinha, nas academias das polícias também tem que ser modificado.
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