– A primeira obra em cores sobre as Cataratas do Iguaçu, a “Vista do Salto Yguaçú”, pintura de José Apoim, data de meados do século dezoito. 155 anos antes da fundação da cidade Foz do Iguaçu –
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Essa trouvaille deslocou o eixo das pesquisas historiográficas da iconografia sobre o Paraná do século XIX para o século XVIII. As notícias sobre a iconografia no Paraná são, de certa forma, recentes e tributárias das pesquisas do estudioso e colecionador Newton Carneiro, que, em 1950, publicou um pequeno trabalho, Iconografia Paranaense. Em 1973, o mesmo estudioso publicará, juntamente com J. F. de Almeida Prado, Jean Baptiste Debret. 40 paisagens do artista, obra que dará ao pintor e aquarelista francês o privilégio de ter sido o primeiro a retratar Curitiba, Paranaguá e as principais povoações localizadas no Caminho das Tropas. Com a edição de Pintores da Paisagem Paranaense, em 1982, pela Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte, mais uma vez Debret é citado como o pioneiro de nossa iconografia.
No inserto, Alpoim vale-se do desenho aquarelado para traduzir o jogo cromático das águas, matas e rochedos. O desenho traz no alto – de modo a se tornar deliberadamente aditivo – um elemento de natureza mais técnica, o Plano do Salto do Rio Yguaçû.
Assim, para valorizar a vista, o plano aparece como uma espécie de pergaminho anexo, concorrendo para tanto a imitação de bordas enroladas simulando um “desenho” sobreposto.
Desse modo, a Vista do Salto do Rio Yguaçû ganha em espaço e importância. Mesmo em condição aditiva, o Plano do Salto do Rio Yguaçû também é contaminado pela exuberância da mata pluvial subtropical verdejante que margeia o Rio Iguaçu.
No sistema figurativo da época, o plano e a vista das Cataratas do Iguaçu participam do tema da representação de lugares, cabendo ressaltar que, desde o século XVI, a cartografia situa-se como uma das formas de orientação do espaço que recorre a outras áreas do saber além do científico, especialmente a arte do desenho e do ornamento artístico.
Neste caso, comparando o Plano do Salto do Rio Yguaçû com trabalhos técnicos de especialistas contemporâneos, como os de Reinhard Maack, o registro de Alpoim ganha destaque, pois ainda que o autor da iconografia tenha se apoiado em elementos técnicos rudimentares próprios da época, consegue determinar com acuidade o movimento em curva do Rio Iguaçu,se encimando para as cataratas, bem como o estreitamento e a queda no cânion, onde ocorre a precipitação das águas.
Esta “parte” do inserto traz um cartucho contendo a escala de medição em petipé – utilizada na navegação para apontar a força da água. O cartucho ou cartela é adornado graficamente com volutas em forma de ondas, que se encontram no centro em uma alegoria de monstro com a boca aberta, talvez um remanescente da visão clássica do deus do vento, Eolo, reforçando com seu sopro a força e o perigo das águas, com a direção indicada por fechas em forma de peixes.
Por sua vez, a Vista do Salto do Rio Yguaçû dá lugar para o autor expressar seu entusiasmo e maravilhamento diante do espetáculo natural e registrá-lo com dote artístico sem contaminar a paisagem apreendida com intenções ligadas ao domínio português sobre o território. Ao contrário, sua vista tem o interesse em retratar o espetáculo das águas e a beleza da paisagem.
Ao comprometer a perspectiva, oferece uma visão “plana” que resgata o número incontável de saltos e a presença, hoje quase que apenas mítica, das palmeiras que coroam o alto do cânion. Sua raridade decorre de o alerta do geólogo e ecologista Reinhard Maack não haver sido levado em conta. Isso porque, desde a década de 1930, Maack já alertava que a palmácea Mauritia vinifera era a mais rara vegetação do Paraná, e que, por isso, “deveria estar sob proteção governamental especial”.
É interessante observar que as dobras do inserto praticamente coincidem com as diferentes “partes” dos derrames das cataratas. Inicialmente, a plataforma resultante da ampla curva e de uma corredeira do Rio Iguaçu, que se estreitando, de 1.200m para 65 a 100m, despenca-se na linha tectônica: é o espetáculo da Garganta do Diabo e dos grandes saltos com seu permanente arco-íris – ponto inicial ou culminante das cataratas.
Seguem-se as camadas das inúmeras quedas isoladas e do istmo que avança dando a impressão de ilha (Cresta de los Saltos e Salto San Martin), e, finalmente, a grande curva onde fica a Boa Vista, seguida de saltos mais espaçados (do Salto Adão e Eva até o Salto de Amores). Analisada em sua totalidade, a ausência de profundidade da Vista do Salto do Rio Yguaçû permite resgatar em sua totalidade a sequência de quedas, rochas, corredeiras e matas, o que é reforçado pelo ponto de vista a partir da margem brasileira.
Em a Vista do Salto do Rio Yguaçû, o espetáculo de grandiosidade quase que barroca de nossa natureza fica estreitamente ligado à sensibilidade interessada em entronizar a especificidade e a originalidade de uma paisagem de beleza e esplendor impensados, diante da qual Alpoim dá-se ao luxo de registrar como se fora instante de maravilhamento.
osé Fernandes Pinto Alpoim (1700-1765). Plano do Salto do Yguaçû (Detalhe)
_________________________ Artigo de Cassiana Lícia de Lacerda, de 2014, reproduzido de Travessa dos Editores.
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