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Igreja incendiada fotografada por Harry Schinke em Foz do Iguaçu, em maio de 1925 – Foto: acervo Guatá
. Registrada está no pano da história… A imagem ali, pronta, moldada no papel grosso com abas desfiadas e num gris relutante como vela avistando temporal, presa entre quatro bordas, quatro quinas reforçadas com o cercado rijo dos meus dedos, polegares palanqueados à esquerda e à direita marcando em linha reta início e fim da planície que sustentava a igrejinha com chamas descabeladas ao vento outonal. Consegui! Depois de disparada carreira cortando o lote dos Vera e o terreirão dos Batista, saltando a estacaria da Mesa de Rendas e desviando do lamacento Córrego M’Boicy, brotava ali o rascunho da memória, arfando repousado sob o fixador e querendo emergir como o deus-serpente guarani criador dos saltos do Yguassu, brotando da escuridão do quarto recendendo amônia e suor desenfreado deste principiante fotógrafo de quermesses. Ah, as quermesses! Festas pontilhadas de gente movida pelo desejo de transformar o velho oeste em uma clareira ecumênica e esperançosa por reconhecimento ou por um olhar de canto que fosse por parte das capitais léguas distantes. Três governos, nenhuma atenção e ainda assim brasileños, paraguayos e castellanos insistiam em dar lenha ao fogo pioneiro fagulhado aqui século de antanho. Centelhas na memória em conluio com as faíscas pulsando da capela deitada no papel que bóia à minha frente, lembranças cálidas dos días santos e suas colores brotadas das janelas vesgas defronte estradas que levavam compadres e comadres ao paço central da Vila Yguassu! Guarânios, tangueiros e gaúchos das estâncias cercanias se revezando nos acordeões, harpas, violas, cornetas, tambores, gaitas e rabecas, sustentados por alpargatas, botinas e sandálias emplastadas de barro nascente dos pisoteios regados a vinho e aguardente do alambique dos Martins. Crianças com matracas nas mãos e pentes empapelados nos beiços tentando acompanhar fandangos e arrasta-pés engolidos pela madrugada onde vaqueiros com pilchas respingadas, senhores com camisas amarfanhadas e até índios engravatados rodeiam fogueiras e arrancam tiras dos costelões dourados no contraponto do gole da cachaça. Moçoilas e damas fitando, entre leques e rendas, as bruacas doutro lado das vielas num eterno questionar da moral dos soldados da Colônia Militar que cumprimentam tão libertino mulheril em plena noite santa. Festas sempre iniciadas pelo badalar do bronze sagrado da Igreja acastelada no alto da estrada, da Casa de Deus tão sonhada pelas beatas desde a promessa de Monsenhor Guilherme três anos atrás. Antes, homens santos vinham somente das tierras de Posadas e da distante Guarapoava duas ou três vezes ao ano. Era uma alegria só quando missioneiros vinham rezar, batizar crianças e selar matrimônios dos amasiados. A capela se ergueria do chão somente no ano que passou, depois de padre Guilherme, padre João e irmão Bianchi terem recebido a chancela da Paróquia de Guarapoava para construir, catequizar e pregar na distante culatra do Estado que continha a chama da fé iluminando a borda de cá, tão distante e tão opaca pela lonjura da civilização, das cidades, das casas adobadas, dos bondes e dos carros motorizados zingrando pavimentos e seus paralelepípedos. Mas agora veio o fogo da exaltação que representaria a alegria de muitos voltando do auto-exílio para as tierras da família e para os quinhões herdados de patriarcas mortos, labaredas que engoliam a igrejola de madeira, de telhado ripado, de esteio frágil e implorante por ajuda dos aldeões. Incêndio causado pelos escapulidos folguedos que sinalizavam a saída dos Tenentistas para o norte, direção contrária do Exército regido por Marechal Cândido Rondon. A imagem balança em minhas mãos tentadas a aplacar o fogaréu com um sopro quente dentro do cubículo escuro, mas o fixador apreende a lembrança de vez, colocando o que vi para que outros possam ver, rever e socar o punho sobre a mesa dizendo que somos um povo cercado pelas agruras, pela aspereza da vida, pelo descaso misantrópico do governo republicano que vem nos escarnecendo como um ninguém, um sabujo dependurado no mapa de uma província e despencante tal qual as grandes águas do rio. Mas somos o broto de uma história tremulando renitente neste paraíso verde visto por mais estrangeiros viajantes dos vapores portenhos que brasileños cultos e abastados, somos o marco – ainda que amorfo e esgrouvinhado de uma comunidade latente e de garras tesas para o porvir.
Hoje, 3 de maio de 1925, três dias antes dos meus 22 anos completos, eu, Harry Schinke, registro fogo e ruínas causados pelo despreparo, pelo descuido e até pela ignorância dos meus iguais. Mas amanhã, testemunharei o levante aguerrido, um enxame de pés descalços prontos para amassar esta imagem, soprar o cinza e emanar, da linha que corta fora a fora a estampa do cenário, paredes amareladas e cheirosas de madeira nova daqui mesmo da nossa região, do nosso mundo. Sim! Outro altar construiremos sobre os restos daquele, fixados com pregos e argamassa da fé que não tem fim. .
Não sei se esta fotografia vai durar mais um século, mas nossa história será mais forte que o papel, mais forte que as palavras e mais forte ainda que os balaústres crepitantes da capelinha. Uma vereda que nasceu fundo sertão adentro e que agora não tem mais como estancar, pois a foz deste rio termina em redondilhas que passarão de boca em boca até extravasar por outras tierras, fazendo da imagem que tenho nas mãos apenas uma em milhões. Eis minha sina, eis nossa sina.
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