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. As histórias não contadas da biblioteca calada do senhor Espectro atestam que nos anos 20, aconteceu na região das Três Fronteiras um dos momentos mais significativos para a narrativa de seu romance. Os personagens que embalaram a imaginação deste escritor que morreu invisível para os anais da literatura nacional são três jovens com semblantes de astúcia e simplicidade. São eles, Luis Carlos, Maria Gomes de Oliveira e o raivoso Ferreira.
. Nos manuscritos do escritor também conhecido por “Seu Avejão” estão gravados com muitos rabiscos, os mapas feitos a mão de todas as peregrinações do trio mundo a fora. O preciosismo nos pormenores do contador de histórias que se ocupava também da venda de quinquilharias desde 1915 – época que chegou ao Brasil – tinha um grande objetivo: fazer o grande encontro. Neste dia, iria rever seu amigo e quase irmão. Benjamin Abrahão juntamente com seus amigos imaginários.
. Avejão tinha ciência que o companheiro Abrahão após sobreviver com muito suor, na lida de mascate pelos sertões, foi convidado a assumir o posto de secretário de um padre do nordeste. Aos poucos seu amigo largava o ofício de caixeiro viajante de produtos típicos – ocupação que fazia desde quando desembarcou em Recife – para tornar- se o homem de confiança de “Padim Ciço”.
. O escritor da fronteira e o habilidoso Abrahão, ambos sírio-libaneses vieram para o país por discordarem da convocação obrigatória que empunhavam aos compatriotas a luta pelo exército britânico. Espectro por acreditar no sul, partiu com seu bornal com poucas pratas e muitas bugigangas. Acreditou cegamente que um dia sentaria embaixo de uma sombra. Abrahão preferiu o calor e os comportamentos mais avexados de encara a existência terrena.
. Por mais de 10 anos, os amigos ficaram sem se falar. Apenas no começo dos anos 20 foi reatado o contato. A proeza aconteceu através de um telegrafo que o senhor Espectro foi receber do amigo “nordestino” no município de Cascavel. O texto caiu para Avejão como uma carta divina. Na redação muito bem escrita o amigo dizia como esta levando a vida e pedia notícias. Eis um pedaço da nota:
. “Ilmo amigo Espectro. Aqui estou muito bem. Após andar muito. Hoje me encontro com um bom trabalho. Estou realizando diversas obras junto com um homem abençoado, o vigário Cícero Romão. Queridamente encarado pelo povo aqui como o padim de todos. Respeitado até mesmo pelos bandoleiros do sertão”.
. A revelação do amigo dava ainda mais esperança para que seu “romance sonhado” torna-se real quanto acontecimento e publicação.
. Antes mesmo da confissão do amigo, Avejão tinha tomado conhecimento pelos jornais do envolvimento do religioso com o Capitão Virgulino Ferreira, o mítico “Lampião”. O escritor não sabia que o melhor estava por vir. Apenas no segundo telegrama, 6 anos depois, descobre que o amigo Abrahão tornou-se o fotógrafo oficial do bando de Lampião.
. Bandoleiro, que segundo consta nas notas da imprensa, foi convocado pelo presidente da república federativa do Brasil, Artur da Silva Bernardes, por meio de seu ministro de guerra, o Fernando Setembrino e pelo padre Cícero, a lutar contra a turma do Cavaleiro da Esperança. Mal sabiam os governantes, que os cangaceiros odiavam a elite governamental.
. A cada dia que passava o romance de Avejão mais se parecia com a realidade que visualizava. Numa tarde de quarta feira, do ano de 1924 vê seu personagem ao vivo. E para alegria do escritor, Luís Carlos Prestes, desce de seu cavalo e lhe pede informações a respeito das três cidades da fronteira. Daquele momento, Avejão jamais esqueceu. O instante foi à consagração de seu silencioso e impublicável livro.
. Emocionado, o contador de histórias conseguiu responder ao ilustre visitante e lançou uma única pergunta: o que trazes o senhor aqui? “Bem. Estamos na luta. Queremos o fim desta República. Marcamos de nos encontrar aqui nesta cidade com os meninus do Lampião. Mas não vai dar para esperar. O dever nos chama”. Sem palavras Avejão viu a Coluna Prestes partir com seus cavalos rumo ao bairro Porto Meira em Foz do Iguaçu. No pôr do sol, surgia o desenho de montadores com seus animais lustrosos, pincelados pelo balanço da poeira nos céus iguaçuenses próximo a Ponte da Fraternidade (Brasil-Argentina).
. Encabulado e introspectivo o homem olha para os lados, abaixa a cabeça, cutuca o corpo e percebe que não está sonhando. Este estado de reflexão interna do escritor com o mundo tem a duração de mais ou menos umas 5 horas. Ainda em dúvida se partiria para a reta final de seu romance. Escuta um bate-pé tremendo. Pela fresta da janela vê cinco vaqueiros em frente de sua morada, localizada às margens do Rio Paraná.
. Quando abre a porta se surpreende com o grupo que vê. O bando de Lampião. Os mesmos estavam há dias buscando informações por muitas residências e fazendas do Oeste do Paraná do caminho seguido pelos amigos da Coluna Prestes. Eles não foram reconhecidos por nenhum dos moradores da região. Os salteadores foram confundidos por vaqueiros argentinos.
. Com exceção de Espectro, que reconheceu o fotógrafo Benjamin Abrahão, o Virgulino Ferreira “Lampião” e Maria Bonita de imediato. O escritor não conteve a emoção de rever o amigo e cumprimentar os seus três personagens no mesmo dia. Uma forte pressão no coração fez com que dissipasse pelos ares, a vida do contador de histórias, e com ela, a memória viva desta história. Que só mesmo o escritor sonhou!
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