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"O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever", de José Saramago
"O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever", de José Saramago
19 de março de 2024
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O texto é um fragmento da parte inicial do discurso proferido pelo escritor português, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, da Academia Sueca.
“O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da manhã, quando a promessa de um novo dia ainda vinha por terras da França, levantava-se da cama e ia para o campo, levando até a erva meia dúzia de porcas cuja fertilidade ele e a mulher se alimentavam. Viviam desta escassez meus avós maternos, da pequena criação de porcos que depois do desmame eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga era o seu nome, na província do Ribatejo.
Eles se chamavam Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro de casa, eles recolhiam os leitões mais fracos das pocilgas e os levavam para a sua cama. Debaixo dos cobertores ásperas, o calor dos humanos livrava os animais de uma morte certa. Mesmo que fossem pessoas de bom caráter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos procediam assim: o que lhes preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu pão de cada dia, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar muito mais do que é indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas caminhadas de pastor, cavei muitas vezes a terra do pomar anexo à casa e cortei lenha para a lume, muitas vezes, girando e voltas na grande roda de ferro que acionava a bomba, fiz subir água do poço comunitário e transportei-a ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das colheitas, fui com a minha avó, também de madrugada, equipados de ancinho, pano e corda, recolher nos rastro a palha solta que depois teria servido para o leito do gado. E às vezes, em noites quentes de verão, depois do jantar, o meu avô dizia-me: “José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira”.
Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a mais velha, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para todas as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomasia, palavra erudita que só muitos anos depois acabaria conhecendo e sabendo o que significava. No meio da paz noturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela me aparecia, e então, lentamente, se escondia atrás de uma folha, e olhando para outra direção, tal como um rio correndo silenciosamente pelo céu côncavo, surgia a claridade translúcida da Via Lactea, o caminho de Santiago, como ainda o chamávamos na aldeia. Enquanto o sonho chegava, a noite se povoava com as histórias e os acontecimentos que meu avô contava: lendas, aparições, incríveis, episódios singulares, mortes antigas, escaramuças de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha acordado, o mesmo que suavemente me embalava. Nunca soube se ele se calava quando descobria que tinha dormido, ou se continuava a falar para não deixar pela metade a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele, calculadamente, lhe introduzia na história: “E depois? “.
Talvez ele repetisse as histórias para si mesmo, talvez para não as esquecer, talvez para enriquecer com novas peripécias. Naquela minha idade e naquele tempo de todos nós, não será necessário dizer que eu imaginava que meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, na primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me acordava, ele não estava mais lá, tinha ido para o campo com seus animais, me deixando dormir. Então levantava-me, dobrava o cobertor e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas enredadas no cabelo, passava da parte cultivada do pomar para a outra, onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa.
Minha avó, já de pé antes do meu avô, me colocava na frente uma taça de café com pedaços de pão e me perguntava se eu tinha dormido bem. Se eu lhe contasse algum pesadelo nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: “Não ligues, nos sonhos não há firmeza”. Pensei então que a minha avó, embora também fosse uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, aquele que, deitado debaixo da figueira, com o neto José ao lado, era capaz de colocar o universo em movimento apenas com duas palavras.
Muitos anos depois, quando meu avô já tinha partido deste mundo e eu era um homem feito, cheguei a perceber que a avó, também ela, acreditava nos sonhos. Outra coisa não poderia significar que, sentada uma noite à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, olhando as estrelas maiores e menores acima da sua cabeça, teria dito estas palavras: “O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer”. Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesadelo e trabalho contínuo que tinha sido a sua, naquele momento quase final, estivesse recebendo a graça de uma suprema e última despedida, o conforto da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa, como não acredito que existisse outra no mundo, porque nela viviam pessoas capazes de dormir com porcos como se fossem seus próprios filhos, pessoas que tinham pena de sair da vida só porque o mundo era lindo, gente, e esse foi meu avô Jerônimo, pastor e contador de histórias, que, sentindo que a morte vinha buscá-lo, se despediu das árvores do seu pomar um por um, abraçando-as e chorando porque sabia que nunca mais as veria. (…)”
Leia aqui o discurso em sua íntegra.
José de Sousa Saramago foi um escritor português(1922-2010). Recebeu o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante prêmio literário da língua portuguesa.
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