Uma vez por mês tem uma reunião para saber se anda tudo bem no mercado (não o financeiro). O mercado mesmo, desses que vendem mercadoria; e a conversa era sempre a mesma: os donos do mercado falando o quanto o mercado havia crescido, o quanto tinham lucrado e estavam ali para agradecer os colaboradores. Eu não entendia quem eram esses caras, os colaboradores, e porque eles estavam falando pra gente. Só sei que pra nós que trabalhávamos mesmo igual uns burros, nada de agradecimentos. Pior, nada de aumento, a não ser de trabalho. Mas, tá!O que eu queria dizer mesmo é que este mês foi muito diferente. Já começou assim, sentamos em círculo; já achei estranho, sempre foi em fila. Mas vamos lá. Aí quase caí da cadeira. Foi quando eles começaram a falar que gostariam de saber se nós estávamos contentes em trabalhar aqui. Nossa, passou um monte de coisa na minha cabeça. “Essa é a hora! Vamos dizer tudo que está engasgado na nossa garganta.. Enfim vamos ser ouvidos. Todos os maus-tratos vão ser revelados e vai ser hoje!” Mas um susto me fez sair dos meus pensamentos.– Uma palavra, vamos começar por você.Apontaram pro meu melhor amigo, meu coração acelerou. Suava frio, as pernas ficaram trêmulas, mas neste instante, pensei: “Esse é o cara. Ele pensa como você e ainda ele é um dos nós; ele sabe tudo o que nós passamos, vai falar tudo o que esses filhos da puta precisam ouvir. Enfim, começamos bem. Ele fala e ele passa a bola para mim, aí a gente detona esses caras.” Mas não foi nada disso, ele simplesmente olhou pro chefe e disse: Eu adoro trabalhar aqui, vocês são ótimos, tratam a gente com respeito, etc, etc. Putz, meu amigo… Meu coração parou, fiquei louco, não me cabia na cadeira, quase levantei e bati no cara. Já não sabia se eu tinha raiva dos caras chefes, ou do meu amigo que não disse nada. Porra, eu adoro trabalhar aqui… Tudo que a gente falava quando estava repondo as mercadorias sem poder comer sequer uma banana… Repondo chocolate, biscoito, iogurte, e nada de poder pegar um sequer. E a fome que dava, meu… Que raiva, e que só aumentava. Cada um que falava depois dele eu ia lembrando do que a gente tinha combinado se algum dia a chance aparecesse. Não era o que estava acontecendo. Mas continuei confiante, afinal, nós eramos em muito a maioria. Ainda tinha pra mim que alguém ia dizer a verdade. E foi indo, andando a vez de quem estava no círculo. A cada um novo que falava, então mais eu ia vendo o quanto a gente é fraco e desunidos. E foi passando o Bolota, o Vesgo, o El Flaco, o franzino. Até a vez do Montanha chegou e nada, nada. Quando eles se aproximaram de mim eu tinha tudo o que dizer, tava tudo na minha cabeça. Pronto eu vou dizer tudo, foda-se mesmo que seja a última vez que eu fale, pensei.Então o chefe olhou pra mim e com aquela voz imponente, disse:– E aí, você, Wilson, também adora trabalhar aqui?Acho que fiquei uma hora parado sem ação, estático mesmo, sem saber o que dizer com um medo estrondoso. E agora? Mas eu pensei, essa é a hora. Nunca mais esses caras vão dar essa chance. Comecei assim: “Eu odeio, vocês não respeitam a gente e pagam mal. Não dão um minuto de descanso, sequer um lanche ou um almoço que presta. Gente é tratada como cachorro…” Fui falando tão rápido que duvido que eles entenderam pelo menos a metade, pois a resposta deles me surpreendeu ainda mais.O chefe chegou mais perto de mim e soltou:– Eu sabia que você é o Che Guevara do mercado!Olhei pra ele e fiquei sem saber o que aquilo queria dizer, eu não sabia nem quem era Che Guevara. E o pior não foi a fala. Foi ele virar e seguir adiante sem mais nenhuma palavra, nada. Fiquei cego e surdo e de raiva saí gritando que eu era o Che do mercado. Meus amigos, aqueles que eu julgava meus companheiros, caíram na gargalhada e depois silenciaram. Somente um é que foi solidário a mim, o Mundinho. Ele gritava junto comigo, ninguém entendia o que ele também queria dizer. Só sei que saiu comigo pelo mercado aos gritos até a rua. No outro dia voltei ao trabalho, pensei que ia ser um acontecimento. Quando entrei porta adentro, imaginei que todos iam me aplaudir, gritar meu novo apelido, ou o nome Wilson em outro tom: Wilsooon! Eu estava faceiro, louco pra de hoje em diante ser o herói dos pacoteiros. Mas entrei e nada. Ninguém sequer me viu. É, cara. Esses são os meus amigos. Nada, nenhum e ninguém. Então o meu chefe, chegou perto de mim e perguntou econômico:– Então, está mais calmo?Nossa, me deu muita raiva. Calmo, calmo? Como assim? Eu estava é furioso, a minha vontade era de repetir tudo de novo, inclusive gritar o apelido pra mostrar que não tinha vergonha. Mas antes que eu dissesse qualquer coisa, ele mandou:– Vai para o depósito empilhar aquelas caixas!
__________________________Lange Rocha é psicóloga, servidora pública e atriz. Uma das fundadoras da Casa do Teatro, em Foz do Iguaçu. Conto publicado na edição 33 da revista Escrita.
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