Quero a cidade que me impulsa, não essa que se discursa, que se excusa, amordaçada, presa em seu castelo de olhares. Não essa, fotogênica, hierática, higiênica, desenhada em linhas frias com suas pobres luas de acrílico. Curitiba, azul, verde, gris intenso clamor de abismo. Quero a cidade que me perdeu num cárcere de cinzas. Seus pedaços de silêncio, seus vapores de medo, a surdez de seus invernos, o fio de seu grito, a cortar a neblina, a cidade fora de seu tempo. Azul, verde, azul lisa pedra do enfado
II mil vezes exilada em si mesma, em sua gente limbo de solidão e fastio. Sou quieto relâmpago a ferir a noite Chama venérea a percorrer vielas, ruas de metáforas, odor escuro, eu a reconstruirei, obstinado, à imagem e semelhança de meus desatinos, à margem de sua loucura. Curitiba, gris, violeta, azul reino secreto, indevassável. Acaricio seu rosto de pedra no céu da tarde que filtra música, cantatas, sinfonias, para despertá-la lânguida, felina, gata no cio, lúbrica, uterina, concubina. Curitiba que ninguém nos veja, cúmplices, a sorrir, quase eternos, excluídos da verdade oficial.
III
Em seu vestido de águas bordado de prata e angústia Curitiba nunca expõe a nudez de suas mágoas. Prefere a calma aparência de quem não briga, não pulsa não tem vontades, não quer enfrentar os seus demônios que encerramos no sótão do impossível esquecimento. (Quem plantou nas avenidas as flores quase reais que escondem nossas feridas?) Não se perca o visitante no risco certo das ruas, na pequenez das igrejas na geometria solene do sempre mesmo discurso que oculta nossos vícios e não diz os nossos crimes.
IV
Veja a arquitetura dos muros feita de nossas tibiezas atrás deles se escondem a virgem e os seus amantes o religioso pedófilo as sociedades secretas o jogador que aposta a vida num único, repetido lance. (Os cenários que não refletem no espelho feito de saudade e pinheiros da Helena Kolody.) Lá estão nossos amigos, tão poucos, e os desafetos, tão muitos, rogando praga. Mil olhos nos guardam pelas frestas das janelas mil dedos apontam para denunciar nossas ideias.
Para contar Curitiba é preciso investigar a luz de suas entranhas revelar as suas crenças confessar os seus pecados que guardamos nos baús das famílias decadentes. Espiar o agiota ansioso a dividir nossas dores em prestações mensais abençoar as adúlteras e os santos que pecam na sacristia, depois da missa de domingo. Quantas sociedades secretas quantos ritos de ódio, baile de equívocos as vítimas de olhos deslumbrados, amargo sorriso diante da inefável retórica dos crápulas. (E não esqueçamos de nós, poetas sem versos, sem palavras.)
V
Feito isso estamos prontos para amar a cidade que nos pariu. Assumi-la sem pejo o sotaque fechado admirar seus vitrais sem cor contar os grotescos ex-votos no túmulo de Maria Bueno. Ouvir as pequenas histórias do amor e do desamor, suportar a algaravia nos templos onde os falsos pastores para arrecadar o dízimo anunciam aos gritos o Juízo final. Não sabem que Curitiba parou os seus relógios para conter o tempo e adiar definitivamente o dia do nosso inevitável julgamento. (Curitiba, azul, verde, gris, de minhas madrugadas agônicas
________________________Fábio Campana é jornalista e escritor em Curitiba, Pr.
Assine as notícias da Guatá e receba atualizações diárias.