Ilustrações: Camila Gray
Uma ficção para a minha vó, Helena. In memoriam.
Ir à feira era tão importante quanto ir à missa. O peixe ela comprava nas barracas de sempre, 40 anos de Rio de Janeiro e todas as sextas ia religiosamente investigar o brilho no olho do bicho. Deixava temperando. Sábado era dia de banquete. Além do assado com cabeça e tudo, tinha torta de siri, pirão, chester, farofa, maionese e bolo de tapioca, aquele que quebrou o dente da neta. Os convidados minguavam de ano em ano, cada filho tinha uma desculpa original. O banquete, porém, continuava o mesmo: além do assado com cabeça e tudo, tinha torta de siri, pirão, chester, farofa, maionese e bolo de tapioca, aquele que quebrou o dente da neta. Não diminuía nenhum item do cardápio. As sobras ela congelava. À medida que o tempo passava, o freezer ficou pequeno para tanta comida que restava. Dona Helena, resistente, fazia o banquete.
Ficava dias imensos preparando tudo, desde a manhã na feira, o ritual lento que ia do peixe aos ovos, dos legumes às frutas da estação. Conhecia cada pedaço daquele mundo, o piso da feira era seu segundo chão. Não tinha pressa. Era um tempo calmo e necessário. Ao fim de três horas, as mãos mal davam conta das sacolas, mas ela carregava o peso sozinha até despencá-lo em cima da mesa, esbaforida e feliz, como gostava da cozinha grande e amarela, onde vivia grande parte dos seus dias.
No primeiro ano em que o banquete foi “inaugurado”, todos os seis filhos, com seus respectivos agregados, compareceram. Devastavam a terra farta da mesa pronta. Iam embora gordos e alegres, deixando o rastro da destruição nos pratos imundos.
Desde sempre, Dona Helena passava a madrugada de sábado limpando a casa. Domingo ia à missa rezar para o marido longínquo e agradecer por mais um banquete, a comida que unia os seus pedaços, fazia aparecer os que talvez sumissem rapidamente não fossem guiados pelo paladar. No íntimo, sabia disso e caprichava. A tristeza maior foi que, com o tempo, nem o exagerado cardápio funcionou — mesmo assim, Dona Helena, resistente, fazia o banquete.
Aos poucos, alguns problemas de saúde dificultaram a tarefa. Os dedos foram os primeiros a atrofiarem. As mãos não acertavam o corte das cebolas como antes. Dona Helena não aceitava ajuda nem da Eloá, a amiga de infância que viera também do Maranhão; não prestava para a cozinha, não tinha tato, deixava cair as travessas, salgava demais o pirão. A amiga participava dos banquetes desde o começo, era uma sozinha no mundo. Dona Helena se orgulhava da família, mas percebia seu destino estava cada vez mais parecido com o da amiga. O freezer inchado de sobras.
Dona Helena, resistente, fazia o banquete.
Um dia acordou com o coração opresso. Uma dor estranha e forte. Precisou chamar o médico, bem que tentou se levantar e descer para pegar um ônibus. Mas não conseguiu. O diagnóstico severo indicava a colocação de um marca-passo. Foi levada para o hospital de ambulância. Operação a céu aberto. Encarou o desafio. Os filhos depois prestaram serviço de visita. Ela se sentiu abençoada e rodeada pelos seus todos.
Depois da cirurgia, voltou para a casa disposta a se recuperar. Assim que estivesse mais forte, iria seguir com a preparação dos banquetes, o fôlego renovado.
Era mesmo resistente.
Com o tempo, a vida se refez da forma que dava, os dedos ainda atrofiados, mas o coração batia bem. Respirava melhor. Uma noite, porém, além dos dedos das mãos, os dedos dos pés também se atrofiaram e depois as pernas, talvez por uma perversa e incompreensível forma de contágio. Foi preciso chamar a Eloá — Dona Helena tinha dificuldade de arrastar os passos. Foram para a emergência.
O diagnóstico cruel foi o de que Dona Helena sofria de uma espécie de artrose que se multiplicava pelo corpo — dali para frente, só poderia andar de cadeiras de rodas. Ficou alguns dias internada para que estivesse confiante a fim de começar a nova etapa.
Voltou para a casa com a ajuda de Eloá, que a deixou na beira da cama. Ela tentaria viver sozinha, não queria ninguém ali por obrigação, e os cuidadores nem pensar, era um serviço caro, achava um desperdício, tinha cabeça boa, conseguiria dar conta de si, a cadeira era forte. Tentou seguir com a rotina entre a feira, a preparação do banquete e a missa. Sempre a bordo de sua cadeira de rodas que era fácil de manusear, bem moderna.
O cardápio do almoço permanecia o de sempre: além do assado com cabeça e tudo, tinha torta de siri, pirão, chester, farofa, maionese e, claro, o bolo de tapioca. A família minguante, só restavam dois dos filhos — a moça separada e sem filhos e o rapaz, casado e com duas gêmeas, que não gostavam nunca de nada. O que sobrava da comida juntava-se às sobras anteriores no freezer. Na semana seguinte, ela reaquecia uma parte e acrescentava o que trazia de fresco da feira. Nem tudo era reutilizado. Boa parte continuava no freezer para um “depois”, talvez o natal, o renascimento de todas as sobras.
De repente, houve o dia mais cruel de todos.
Dona Helena se preparou para a feira, arrastou-se até a cadeira como de costume, na insistência de fazer o ritual sozinha, a barraca do peixe, dos ovos, dos legumes, das frutas. Mas naquela manhã a rua estava enlameada por causa da chuva forte da noite anterior. Quando tentou desviar a roda de um pedaço grosso de casca de melancia, não conseguiu recuperar o prumo da cadeira, que capotou ali mesmo.
Ficou uma semana e meia no hospital para costurar a boca e parte do rosto. Voltou para a casa sem poder falar, mas confiante de que logo estaria de novo na feira. Antes, porém, iria à missa agradecer pelas bênçãos da vida.
No último banquete, só Eloá apareceu. Cada filho deu uma desculpa qualquer, uns atarefados, outros moravam longe demais, os netos tinham febre, a vida corrida. Quanto mais Dona Helena se decompunha, menos filhos ela tinha ao redor.
E as sobras se avolumavam.
— Não acha melhor fazer uma doação desta comida toda, Helena? — perguntou Eloá, na tentativa de fazer a amiga entender que os banquetes não tinham mais razão de ser a menos que pusesse a mesa na rua e convidasse quem passava com fome.
Foi então que Dona Helena se trancou na cozinha. E ficou lá horas e horas. Eloá tentou entrar, mas foi impedida. Ela queria estar só fazendo o que não se sabe. Depois de cinco horas, a porta se abriu para um deslumbre: Dona Helena tirou tudo do freezer e transformou o que havia sobrado em comida nova. Fez quitutes diferentes. Torta de peixe, sopa de siri, empadinhas de chester… Eram tantos os pratos que não havia espaço na mesa.
— O que vai fazer com tudo isso, minha amiga? — perguntou Eloá.
— Me ajuda. Vamos levar para a rua.
E assim fez. Pegou a maior toalha que tinha, a dourada que costumava usar no Natal. Pediu ajuda ao porteiro para descer todos os pratos com os quitutes. E armou ali mesmo, no chão, em frente ao prédio, uma grande mesa ao ar livre. Qualquer pessoa que tivesse fome poderia comer. Sentada na cadeira de rodas à beira da calçada, observava quem se achegava: mulheres com filhos pequenos, idosos sujos de rua, alguns moleques cheirando garrafa de plástico; estavam todos convidados para o banquete. Não eram filhos dela nem filhas nem netos, mas estavam famintos — era o que os ligava à estranha senhora.
Devoraram as migalhas. Não sobrou nada pela primeira vez na história dos banquetes. Não sobrou sequer um pedaço do bolo de tapioca, aquele que quebrou o dente da neta. Depois ela recolheu a toalha, levou as vasilhas para cima com a ajuda da amiga e do porteiro. Passou a madrugada lavando tudo lentamente. No dia seguinte, foi à missa agradecer. Estava muito feliz porque percebeu, enfim, que os almoços de fartura poderiam ser degustados por quem realmente tinha fome. Iria fortalecer as sacolas na feira. Dali em diante, o freezer ficaria vazio. Nunca mais ia haver sobras, e os banquetes seriam ao ar livre — quanto mais gente, melhor. Os filhos sumiram de vez.
Vida corrida essa.
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