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– Tá vacilando, Negão. Não dá moleza que o você acaba entregando o bicho pro inimigo.
Filho da Puta. Neste time ninguém dá cobertura. Só sabem reclamar. E esse pontinha nanico tem garra. O técnico exige, fala, xinga, monta esquema, mas de bola que é o nosso negócio não entende nada. Tirando três ou quatro técnicos no Brasil, o resto atrapalha, é juiz de treino.
Marca em cima Dedé. Os homens tão achando que o mapa da mina é você. Entra rachando que esse anão volta pro meio de campo, vira ponta recuado.
Ja avisei. Na próxima vou entrar na canela. Quinze anos de profissão, não aceito desrespeito. Gosto de chegar em cima, marcar fechado. Depois que eu tenho a menina nos pés é preciso muita classe pra recuperar. O duro é quando lançam nas minhas costas. E este Toquinho tem velocidade. Cinco lançamentos e o bandido continua o mesmo. É vivo, o malandro. Fintou todas em cima de minha perna boba. Essa que há doze anos acabou com o sonho de seleção. Numa dividida, pura maldade. Você lembra daquele Vítor que chegou a jogar no Fluminense? Um ponta mais de velocidade que de outra coisa. Esticou a bola, adiantei a perna e o cretino solou. Ouvi o estalo e a dor entrando na minha cabeça junto com a raiva.
Quarenta dias no gesso. Quando voltei já não era o mesmo. Senti que a coragem era outra nas divididas. Inventei desculpas para Maria não ir mais ao campo. Disse que ela me transtornava no meio da torcida. No fundo, era receio de que ela visse que eu tinha mudado.
Acho que sou o jogador do Brasil que tem mais hora de banco. O melhor dos treinos, perdia a posição porque o medo tomava conta durante os jogos. Treino é treino, jogo é jogo, dizia Didi. Desacreditado, contrato de gaveta, ganhando uma mixaria. Sumiu de vista o cartola, seu Antunes, que tinha prometido o apartamento e a legalização dos papéis para o casamento. Isso foi o que ganhamos pelo campeonato juvenil. Nesses momentos todo cartola é amigo. Quer abraçar, dar tapinha nas costas. Botam dinheiro no bolso da gente e se lambuzam de vaselina. Na hora do aperto, somem.
– Presta atenção, Dedé, não suba mais que eles lançam nas costas.
O Zeba tem complexo de licença, como diz o Edinho. Não marca, não desmarca, não cobre, não fica na sobra. Está sobrando no time mas é chegado no presidente Brancão, boa pinta, frequenta casa de diretor. Nunca reclamou de salário e pede pra gente suar a camisa. Nós que estamos há três meses sem receber.
O técnico passou o tempo todo dizendo:
– Olha, Dedé, você viu que eles estão subindo pelo seu lado. Marca em cima esse garoto. O juiz tá na gaveta, no máximo chama a atenção.
Ele não sabe fazer outra coisa. No intervalo repete o mesmo de sempre.
– No segundo tempo o time recua. Vou trocar os pontas pra confundir a zaga. Fica mais fácil pra defesa e, se Deus ajudar, chegamos lá.
A mesma conversa. Em todo este tempo jogando no interior, andando de clube em clube, nunca vi um time tão pipoqueiro. Só tem boleiro cansado. O mais novo está com 29 anos no registro de nascimento. De cidade em cidade, sem descanso, as crianças perdendo as aulas e a gente correndo o risco de por a perna numa dividida ou nas mãos do massagista.
– Vai uma massagem, Dedé?
– Corta essa, seu Edésio, na última você quase tirou o joelho do lugar.
Duas operações na perna esquerda, aquela fratura e outra na clavícula. São ossos do ofício, como diz o doutor Sérgio, que ressuscita qualquer craque do passado com a farmácia que carrega na pasta. Uma injeção chega pra começar a correr.
A torcida vaiou a bola atrasada para o goleiro. O que é que eles querem? Craque joga no Maracanã, onde eu comecei. Era promessa pro ano seguinte, quando o Flamengo tinha aquela linha de cobras: Dida, Zagalo, Joel. Época em que o Vasco tinha Écio, Bellini, Coronel. Botafogo do Didi, Nilton Santos, Garrincha, Quarentinha. Futebol era aquilo. O Santos montando a máquina. Zito e Mengálvio. Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe. E este Toquinho que é o bom. Indispondo-me com a torcida. Podem pedir substituição. Quem estava no banco há dez anos atrás não servia nem pra limpar minha chuteira. Não tinha chance de treinar.
Eu fui bom. Comecei cedo, frequentei mais o campinho que a escola. Minha mãe preferia as aulas. Futebol não é profissão, ela dizia. Quem ficou naquela escola não tem dinheiro pra chegar na geral. Tirando a malandragem, só boleiro chegou a alguma coisa. O resto ficou pra trabalhar na fábrica. Eu não quis morrer devagar como o meu pai. Todo dia perdendo a calma, fraquejando até ser despedido. Rondando os portões, esperando um bico, uma empreitada. Acabou limpando jardim, comendo restos em lata de goiabada. Que nem cachorro. Futebol é carreira melhor. Não fosse eu ter quebrado a perna e estava escalado pro resto da vida na cabeça e nos álbuns de tudo quanto é torcedor. Estava rico. Que eu ia ter cabeça pra aplicar o dinheiro. Nada de gastar tudo com mulher, bebida e jogo e acabar porteiro de zona.
Não quero me desculpar, mas dói ouvir chamar de refugo. O guri leva jeito, mas não teve respeito. Além do mais é muito peladeiro. Quer driblar e eu não sou João e ele não é o Garrincha. Avisei: Você vai levar. Burro fui eu de não ter rachado no início.
– Vai garoto, estica a perna que a bola está mais pra você.
Solei firme. Dói ouvir chamar de açougueiro, assassino. O moleque esticado, osso pra fora, chorando feito criança. Acabou a festa pra ele. Quem começa desse jeito não chega a nada. Vai repetir minha história. Jogar em timinho vagabundo, correr de um lado pra outro, achando que vai acertar na próxima.
Maria tem razão. Isso não é vida. O futebol não é lugar pra todo mundo que está fugindo da fábrica, do resto de comida na lata de goiabada, da mão lavando roupa pra ganhar uma miséria. No Maracanã tem lugar pra 150 mil pessoas ver o jogo. No campo, só 22. Pouco pra tanta gente com fome de bola. Não queria fazer mas está feito. Amanhã arrumo a trouxa e pego o primeiro ônibus. Sou dono do passe, que jogador como eu não tem outra coisa. Pra quem não sabe, no sul o campeonato regional começa na semana que vem.
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