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Grafite em rua de São Paulo – Imagem: reprodução BDf
O sol ainda estava alto e o calor consumia o asfalto. Marcel saiu da agência louco para chegar em casa. Já passavam das sete horas da tarde e o cansaço e uma dor de cabeça terrível atormentavam-lhe.
As cobranças eram cada vez maiores, os negócios não iam bem. No caminho de casa Marcel passou pelo calçadão, a olhar as pessoas apressadas, motoristas impacientes, mendigos e crianças. Exausto, sentou-se para ver dois senhores, já de certa idade, conversando. Marcel imaginou o que seria de sua vida. Já teria filhos, netos, ou estaria ainda no mesmo emprego, fazendo as mesmas coisas. Estas indagações o perturbaram tanto que se espantou ao ver um pequeno livro à sua direita. O livrinho verde tinha a capa lisa, sem qualquer inscrição. Marcel abriu e leu.
. À minha Marie, “Numa esquina de pedra me perdi, Por onde andava, não sabia! Não via, nem sentia… Por muito tempo esqueci-me de ti Um esquecimento sem fim. Uma dor sem sofrimento me tomou por inteiro Meu corpo, sem saber andou imóvel, Pelos muros de concreto. A queda veio, Nem percebi! O dia, a semana, o mês tomaram conta de mim. À sombra do sol, a vida trouxe amores inúteis, sem carinho, sem amizade. Por tudo fúteis. Numa noite escura me rendi… E, ao te conhecer, a venda de meus olhos caiu Assim te vi inteira, vida minha Revelando o amor à humanidade Daquele que se sente quando mais nada se tem, Quando mais nada se precisa O amor que se sente quando o tudo e o nada se encontram na mesma esquina.”
. À minha Marie,
“Numa esquina de pedra me perdi, Por onde andava, não sabia! Não via, nem sentia… Por muito tempo esqueci-me de ti Um esquecimento sem fim.
Uma dor sem sofrimento me tomou por inteiro Meu corpo, sem saber andou imóvel, Pelos muros de concreto.
A queda veio, Nem percebi!
O dia, a semana, o mês tomaram conta de mim. À sombra do sol, a vida trouxe amores inúteis, sem carinho, sem amizade.
Por tudo fúteis. Numa noite escura me rendi… E, ao te conhecer, a venda de meus olhos caiu Assim te vi inteira, vida minha
Revelando o amor à humanidade Daquele que se sente quando mais nada se tem, Quando mais nada se precisa
O amor que se sente quando o tudo e o nada se encontram na mesma esquina.”
.Ao ler aquelas palavras Marcel percebeu a insensatez de sua vida. Os dias, os anos tinham sido repetições ignóbeis de uma realidade comandada pela segurança. Os sonhos, os desejos se desmancharam em nome da razão. O amor e a vida foram deixados de lado.
. Na manhã seguinte delirou ao imaginar como seria tal mulher capaz de provocar em um homem uma paixão tão clara. O amor, para Marcel, era palpável, a vida era algo de que se pudesse tirar proveito.
. Em seus devaneios, Marcel conseguia visualizar esta mulher com uma presença tão forte quanto sua própria vida. Mas não conseguia imaginá-la fisicamente. Todos os seus pensamentos provocavam uma mistura de sensações.
. Já era domingo e Marcel se dividia em mil, imaginando quem tinha escrito palavras tão belas. Seriam pessoas comuns, com vidas iguais a dele, trabalho, casa, problemas com o encanamento, e fiação elétrica, a camada de ozônio, testes nucleares na França, escola dos filhos, o regime que nunca dá certo e todas as preocupações que costumam atingir os mortais?
. A pequena mudança que este turbilhão de emoções operou em Marcel não se fez notar imediatamente. O domingo acabou e, quando a segunda chegou, as nuvens não estavam mais lá. Ainda assim tudo parecia perfeitamente igual. Entretanto o bom dia no escritório foi diferente. Marcel parou de sonhar com tudo o que estivesse muito distante.
. Quando Clarice chegou perto de sua mesa e perguntou-lhe sobre os contratos da financeira, Marcel, com um gesto natural e mais distante do que sempre fizera perguntou:
. – Começa hoje a V Mostra de Cinema Alemão no Espaço Cultural Brasil-Alemão, você não quer ir comigo?
. Clarice, espantada, aceitou o convite, se esquecendo de suas obrigações familiares. Embora trabalhassem há mais de três anos juntos, a amizade entre eles não passava de bons dias. Para ela, a preocupação de Marcel era sobreviver, exatamente como ela se portava.
. O encontro de nossos amigos foi bem diferente do que qualquer um deles pudesse esperar. A sala do cinema era pequena e aconchegante. Poucas pessoas esperavam a sessão começar.
. – Marcel, por que você me convidou? . – Na verdade, não sei. Acho que cansei de desconhecer quem está ao nosso lado. E, depois que li estes versos, achei que poderia ser diferente. . Clarice pegou o pequeno livro e leu a dedicatória como se cada palavra fosse uma adaga a penetrar-lhe o corpo. Foi um modo estranho de descobrir algo. Ela sempre achou que as verdades viessem como raios, envoltas em luz radiante e acontecimentos misteriosos e inusitados. Ao terminar, respondeu:
. -Eu acho que sim. Às vezes me sinto assim. Às vezes sinto que estamos ao lado de máquinas, sem vida própria.
. O título do filme pouco importância teve naquele encontro. Pela primeira vez em suas vidas, aquelas pessoas se encontraram. Naquele dia descobriram quão distante e difícil é conversar e se identificar com seus companheiros de trabalho, sala, quarto…
. As mudanças em Clarice e Marcel foram tão profundas que não se notou diferença. Os novos amigos renderam-se ao trabalho como sempre fizeram, mas agora com um novo sentido. Não se isolavam mais na multidão.
. Paulo ficava na mesa do canto e gostava de romances policiais como Marcel. Estudava ocultismo e psicologia. Ultimamente estava interessadíssimo em neurolinguística. Marcel jamais ouvira falar nisso, mas a curiosidade o levou a conhecer este mundo novo.
. Marcel que sempre gostara do mundo solitário e fantasioso dos livros reencontrou o prazer da leitura através das pessoas.
. Numa noite ao descobrir o peso das palavras e a impressão que estas causam na mente, percebeu a força e o poder de cada pessoa. Distinguiu, imaginou e conheceu novos horizontes, estendendo-se além das lições. De olho nos mistérios do mundo, teve sua maior descoberta.
. Foi assim que Marcel conheceu Julio. Apesar do jeitão meio desengonçado, era o amigo para o chopinho de sábado. Jornalista inveterado, como ele mesmo costumava dizer, adorava calorosas discussões sobre como mudar o mundo, além de ser fanático por jazz.
. Levando uma vida muito simples, mas com paixão pelo que fazia, Julio aprendeu como desfrutar os momentos sem culpa, sem pressa. Tornou-se muito amigo de Clarice que descobriu o árduo trabalho de ver o novo no meio da rotina.
. Numa sexta, qualquer dançar pareceu a melhor opção. Clarice e Marcel detestavam estes lugares cheios de gente, música alta. Mas, naquela noite no meio de tanta gente estranha, encontraram Adriana.
. Ela trabalhava num escritório de contabilidade no andar de baixo da agência. Marcel foi o primeiro que conversou com ela, mas foi Clarice que descobriu junto com Adriana uma paixão escondida pela culinária. Aprendeu a admirar e ter prazer com as coisas simples. Clarice e Adriana eram nada parecidas. Adriana, meiga e tranquila, Clarice altiva e bastante agitada. Elas tinham comportamentos distintos, mas a simbiose era quase perfeita, uma transmitia a outra um pouco de si.
. Com os jantares da dupla imbatível de cozinheiras, o quinteto se reunia todas as sextas-feiras para conversarem e, como não podia deixar de ser, viverem. A cada semana, além de novas receitas, novos amigos, surgiam discussões e longas conversas. Após alguns anos e muito lentamente, o quinteto foi dissolvido como o músico de uma banda, cada um seguiu seu caminho, embora até hoje de vez em quando eles ainda se encontrem para tocarem juntos.
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