Fábio Campana e o neto Antônio a desbravar a fantasia de viver. (foto: acervo Izabel Campana)
O escritor e jornalista paranaense Fábio Campana nasceu em 10 de agosto de 1947, na cidade de Foz do Iguaçu. Em 2017, quando completou 70 anos, publicou esta crônica em seu perfil no Facebook.
Texto alinhavado pelo afeto aos familiares e amigos, Fábio reconhece a maturidade e a enaltece com a vontade expressa de continuar fazendo a vida valer a pena. Infelizmente, sua trajetória foi interrompida em 2021, vitimado pela covid-19.
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Hoje, 70 anos. A vida nem sempre foi um palco iluminado. Houve a escuridão da ditadura, a tortura, as frustrações, o desamor. Mas não devo me queixar. Detesto autocomiseração. Minha vida não foi monótona e devo reconhecer, vaidade às favas, que cheguei a cantar entre as palmas febris dos corações. Desde a infância este verso da música me encanta e, enfim, encontrei a oportunidade de usá-lo.
Não me julguem em fim de linha. A minha obsessão com a morte às vezes causa enorme confusão. Sigo firme. Atento e forte. E com muito tempo para temer a morte. Mudei muito. E não mudei nada. O mundo é que mudou demais. Sou obrigado a me virar para não ficar anacrônico e tenho cá minhas resistências. Às vezes percebo que estou mais perto de meu avô que de meus filhos, culturalmente falando.
A vida não foi avara comigo. Deu-me afetos, deu-me filhos, Rubens e Izabel, um neto, Antônio. Melhor não poderiam ser. Deu-me amigos. É verdade que dos contemporâneos, quase todo mundo morreu. Sou um sobrevivente. E quando encontro outro de minha época que ainda respira, não nos queixamos de dores e que tais. Maldizemos os escombros de valores mortos.
Dói. Tenho saudade da luta, da ação, do protesto, mas isso de quando ansiávamos por liberdade e acreditávamos na utopia. Hoje, os déspotas apedeutas são alçados à condição de heróis. O debate foi pasteurizado. E a logorréia medíocre do politicamente correto escorre da internet.
É claro que de minha meninez aos dias de hoje houve mudanças fantásticas. Durante a minha existência o mundo mudou mais do que em todos os séculos anteriores. As melhorias que mais me espantam são as da Medicina, que reduzem as dores e prolongam a vida. Minha tolerância para a dor é baixíssima. Adoro tomar remédios. Sofro de artrite reumatoide e tenho grande consideração pela morfina. Nos casos extremos, pela cortisona.
Reconheço que a tolerância aumentou. Não só em relação a ideias, mas a gêneros e comportamentos. Surgiu uma sociedade mais rica e mais próspera. Alcançamos o conforto que a sociedade industrial proporciona. Tudo bem, como dizem as almas parvas, mas estes ganhos materiais não correspondeu uma sabedoria mais alta nem uma cultura mais profunda. Houve uma regressão.
Eu penso que levei azar em pegar os anos do regime fardado e suas consequências. Mas tenho de considerar a sorte de ter vivido os anos de nossa pequena e tardia idade das luzes. O cinema novo, a bossa nova, o teatro, aquela inteligência toda concentrada em produzir arte ainda hoje insuperada. Não havia a parafernália digital de hoje. Mas a vida produzia arte, poesia e a interlocução era cara a cara.
Vivemos mais anos, mas são anos ocos, vazios. O plano espiritual é desolador. Renascimento das seitas, das superstições, a degradação do erotismo, o prazer a serviço do comércio, a liberdade convertida em alcagueta dos meios de comunicação.
Tive um único ofício em minha vida. Escrever. Jornalista, crítico, contista, publicitário, marqueteiro, novelista, até poeta, o que fiz foi escrever. Tudo o mais foi decorrência. Na saúde e na doença, na riqueza e na miséria, o que fiz foi escrever. Para o bem e para o mal.
Tenho defeitos incorrigíveis a esta altura. Não sei perder. Não sei perdoar. Faço escolhas movidas por sentimentos menores, como orgulho e vaidade. Da inveja estou livre, a minha soberba não permite. Tenho um grande desprezo pela glorificação falsa das igrejinhas. Mas minto se disser que não me sobe uma ponta de vaidade quando encontro uma crítica simpática.
Sou um poço de contradições. Preciso de solidão. Sou um conversador que ama o silêncio. Meus amigos não entendem minhas desaparições. Me fazem falta os mais chegados que se foram. Eu os invoco na memória, na leitura, mas gostaria da conversa da madrugada, aquela que só desenrola na madrugada.
É hora de encerrar esta jeremíada. Tanta gente, tanta coisa, tanto tempo. Não vale a pena chorar sobre o leite derramado. E já nem sei mais o que é este texto, que seria mínimo, minúsculo, e me escapou desta forma, inspirado em chão de estrelas, palhaço das perdidas ilusões.
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