Com o objetivo de investigar as origens do português falado em território brasileiro, pesquisadores do Laboratório de Lexicografia da Faculdade de Letras, no câmpus de Araraquara, produziram o Dicionário Histórico do Português do Brasil (DHPB). .
A obra, disponível de forma online e gratuita, contém mais de dez mil verbetes que, além da definição, informam o ano em que o termo foi usado pela primeira vez, em qual contexto e o trecho da obra. A depender do caso, o dicionário traz locuções e expressões sintagmáticas relacionadas com o verbete. Desde que foi criado, o Dicionário tem embasado projetos de doutorado dos alunos e, no início de 2023, orientou o Instituto Antônio Houaiss na atualização de centenas de verbetes do prestigiado Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.. O Instituto tem entre as suas principais atribuições a atualização das informações contidas no Dicionário, e para isso, a entidade conta com uma longa lista de colaboradores, além de milhares de obras de referência. No caso do DHPB, o apoio se deu principalmente na datação dos verbetes, isto é, na informação disponibilizada pelo Dicionário sobre quando determinada palavra foi usada pela primeira vez. . “Eu costumo chamá-lo de um dicionário documental, porque nenhum significado está publicado sem sua devida abonação, mencionando quem usou e com qual sentido”, afirma Clotilde Murakawa, coordenadora do projeto e coautora do DHPB. “A palavra é definida e em seguida vem o exemplo, isto é, o trecho da obra aonde essa palavra foi usada com aquele significado. O verbete também registra a primeira datação, e se existir, o sentido figurado e as expressões sintagmáticas”, explica. Linguista e especialista na lexicografia, área que se dedica ao estudo do repertório léxico e à elaboração de vocabulários e dicionários, Clotilde assumiu o projeto em 2008, após a morte da colega e também professora da Unesp Maria Tereza Biderman, responsável pela submissão do projeto ao CNPq e a quem a obra presta homenagem in memoriam. . Atual diretor do Instituto Antônio Houaiss e coautor do Grande Dicionário, Mauro Villar destaca que o DHPB serviu de referência na retrodatação de pelo menos 700 verbetes da obra. Se for considerada ainda a atualização das acepções (a descrição de outros sentidos para a mesma palavra), esse número chega a quase 770 verbetes. “Em alguns casos, essas palavras ainda não haviam sido datadas. Em outros, eram datas que estavam publicadas mas foram atualizadas”, explica. . O diretor do Instituto Antônio Houaiss, os pesquisadores envolvidos no DHPB e a professora Clotilde Murakawa concordam que o principal mérito do DHPB está no banco de dados que dá sustentação ao dicionário. Ainda nos primeiros anos do projeto, antes que tivesse início o trabalho propriamente dito de elaboração dos verbetes, os pesquisadores buscaram documentos históricos publicados no período entre 1500 e 1805. Para isso foram vasculhados bibliotecas públicas e particulares, museus e arquivos históricos no Brasil e em Portugal. Foi o caso da Biblioteca Pública de Évora, reconhecida por abrigar documentos sobre o Brasil desse período. . A lista de material analisado para a pesquisa inicia-se com a carta de Pero Vaz de Caminha, espécie de “certidão de nascimento” do Brasil, e inclui cartas e documentos de diferentes naturezas produzidos ao longo dos séculos 16, 17 e 18 por portugueses que vieram ao Brasil ou por habitantes que aqui estavam. O intervalo dos documentos analisados se encerra com a chegada da família Real portuguesa ao país. “Foi um trabalho braçal que começou do zero e envolveu, além da busca, a digitalização e posterior correção dos documentos, para em seguida serem convertidos para o formato de um arquivo digital que permitisse o acesso por site ou aplicativo específico”, afirma Clotilde. Ao final, o levantamento reuniu um corpus para o dicionário com mais de 30 mil páginas de documentos escaneados que somam aproximadamente 10 milhões de ocorrências. . Desde que foi concluído, o dicionário vem servindo de base para a produção de teses de doutorado para o Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa do câmpus de Araraquara. Alguns desses trabalhos, posteriormente, orientaram centenas de atualizações realizadas no dicinário Houaiss. Alguns verbetes foram atualizados, por exemplo, a partir do trabalho de doutorado de Jozimar Luciovanio Bernardo, que fez um levantamento do vocabulário têxtil do período colonial. A maior parte das contribuições ao dicionário, entretanto, foram produzidas a partir do trabalho produzido pela aluna Mayara Aparecida de Almeida, que elaborou e analisou um vocabulário da escravidão no Brasil colonial tendo como corpus o DHPB em seu projeto de doutorado. “Durante a elaboração do vocabulário, eu observei a datação das lexias do corpus do DHPB e de outros dicionários, entre eles o Houaiss. Notei que em muitos desses verbetes, a datação que encontramos no corpus é mais antiga que a datação dos dicionários”, diz a pesquisadora. . O DHPB, cabe mencionar, foi a motivação para que a então mestranda da Universidade Federal de Goiás (UFG) se candidatasse ao doutorado no programa da Unesp. “No mestrado, eu havia desenvolvido estudos léxicos sobre a escravidão, mas com manuscritos do município de Catalão. Durante esse trabalho, contudo, senti a necessidade de ter um corpus mais abrangente que me permitisse avançar nas análises”, diz Mayara. “Já imaginava que, por ser um dicionário do Brasil colonial, seria possível estudar a escravidão. Mas não tinha noção desse número de mais de 10 mil lexias. Esse volume me permitiu um estudo muito mais aprofundado”. Desde o final de 2021, o dicionário está disponível em formato online e pode ser consultado pela página da Faculdade de Ciências e Letras (FCL), do câmpus da Unesp em Araraquara. . Mayara define seu projeto como léxico-cultural, porque além de inventariar as lexias, ou seja, os vocábulos, ela também discorre sobre questões culturais do período. Nesse sentido, a autora explora a dinâmica dos diferentes sentidos que as palavras carregam, e qual a relação delas com a cultura do período colonial. A pesquisadora destaca, por exemplo, a predominância da animalização do homem negro no significado de termos como cabra, pardo (que tem origem no pássaro pardal) ou mulato. “Por conta disso, hoje em dia, opta-se por não utilizar esses termos, uma vez que no passado eles foram empregados para colocar essas pessoas na condição inferior ao homem branco, como animais mesmo”, diz. . A pesquisadora também ressalta que todas as lexias daquele período empregadas para se referir ao homem negro estavam ligadas à escravidão, mesmo no caso em que eram usadas para se referir a indivíduos livres. “Nos documentos sempre existe a necessidade de se apresentar a condição jurídica do homem negro. Por exemplo, no caso de uma pessoa parda falava-se em pardo-livre, pardo-liberto, pardo-alforriado – termo usado para aquele que já foi escravo ou pardo-coartado, que era uma expressão para quem comprou a sua alforria, mas não terminou de pagar”, explica a pesquisadora. “Por outro lado, nenhum termo era necessário para descrever o homem branco”, enfatiza . Depois de o vocabulário do período colonial brasileiro produzido no doutorado de Mayara ter sido enviado ao Instituto Houaiss, o diretor Mauro Villar atualizou os verbetes e creditou a aluna como uma das datadoras oficiais do dicionário. “Não tinha a expectativa de que a pesquisa da tese acabasse colaborando com o dicionário. Sei que é uma participação ínfima perto da grandiosidade do dicionário Houaiss, mas só de poder contribuir já fico bastante feliz”, celebra. . Villar redigiu ainda uma carta de agradecimento à Clotilde e à equipe de pesquisadores do Laboratório pela contribuição em construir uma obra que reúne mais de 200 mil verbetes e é considerado um dos mais importantes dicionários brasileiros. Desde então, o DHPB consta como uma das 2.800 obras de referência do Grande Dicionário Houaiss “Eu digo que criar um dicionário é como ter uma planta: você precisa regá-la todos os dias. Porque as línguas ganham muitas novas palavras todos os dias, e precisamos acompanhar esse processo. Quando a gente encontra um grupo que nos ajuda com isso, nós só podemos levantar as mãos para o céu e agradecer”, comemora. . Do Jornal da Unesp / Texto: Marcos do Amaral Jorge