Publicação aponta o aumento do consumo de álcool, maconha, analgésicos, tranquilizantes e outros medicamentos entre os 60+, e defende a necessidade de fortalecer políticas públicas na literacia em dependência química – Foto: prostooleh / Freepik
Pesquisadores da USP publicaram, na seção Cartas ao Editor do World Journal of Psychiatry, um texto abordando a dependência química entre idosos, tema classificado pelo Painel Internacional de Controle de Narcóticos (INCB/2021) como uma “epidemia silenciosa”. A carta aponta para o aumento do consumo de álcool, maconha, analgésicos, tranquilizantes e outros medicamentos em pessoas acima de 60 anos, e defende a necessidade de fortalecer políticas públicas em “literacia em dependência química” – termo que diz respeito à capacidade dos idosos de acessar informações, compreender riscos e tomar decisões assertivas sobre o uso de substâncias químicas.
Cartas ao Editor são um formato tradicional em revistas científicas que convidam especialistas a comentar e analisar artigos publicados com o objetivo de manter o debate em aberto, estimular novas pesquisas e promover o diálogo entre autores, leitores e a comunidade acadêmica. Os autores da carta Empoderando adultos mais velhos: aprimorando a alfabetização sobre dependência química para lidar com vulnerabilidades específicas são o psicólogo e pesquisador Kae Leopoldo, professor do Instituto de Psicologia (IP) da USP e pesquisador do Instituto Perdizes do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina (FM) da USP, e o médico psiquiatra João Maurício Castaldelli Maia, também pesquisador do Instituto Perdizes do HC e professor da FMUSP.
Os pesquisadores analisaram artigos de instituições internacionais que trataram de diferentes aspectos da dependência química em idosos. Entre os temas abordados estão os impactos do uso de substâncias na saúde física e mental, o papel da literacia em saúde nessa faixa etária, o crescimento do consumo de drogas nos últimos anos e os efeitos da cannabis sobre a saúde dos idosos dentre outros.
Kae Leopoldo ressalta a necessidade urgente de políticas públicas voltadas à literacia química, um conceito derivado da alfabetização ou literacia em saúde, diante do envelhecimento populacional. Ele alerta que “os idosos são um grupo de risco para diversos problemas de saúde, e o aumento do consumo de drogas nessa faixa etária já é considerado uma epidemia mundial”.
Um dos artigos que mais chamaram a atenção dos pesquisadores da USP foi O papel mediador da alfabetização em saúde na relação entre isolamento social e sofrimento psicológico entre idosos pré-frágeis, assinado por três pesquisadores da Universidade de Huzhou, na China.
O estudo aponta que a fragilidade se tornou um problema relevante de saúde pública e que o aumento do número de idosos frágeis tem ampliado a demanda por serviços de atendimento psicológico nas comunidades.
Kae Leopoldo – Foto: Arquivo pessoal
O trabalho destaca ainda que o isolamento social entre idosos pré-frágeis pode agravar o sofrimento psicológico, o que pode elevar o consumo de substâncias químicas.
Participaram da pesquisa 254 “idosos pré-frageis com sinais como fraqueza muscular, perda de peso e lentidão na marcha, mas que ainda não atingiram um estado de fragilidade completo, que implica uma combinação mais significativas desses sintomas e maior vulnerabilidade”, explica o pesquisador.
Entre os resultados, o estudo indica que o isolamento social está negativamente associado à alfabetização em saúde, que por sua vez está ligada ao sofrimento psicológico nesse grupo vulnerável. Também aponta que a literacia em saúde atua como fator mediador dessa relação. De acordo com os autores, além de incentivar conexões sociais, é essencial investir em medidas de educação em saúde para reduzir os impactos do isolamento e proteger o bem-estar psicológico dessa população.
Outro artigo comentado com destaque pelos pesquisadores trata da tendência crescente do uso de cannabis entre pessoas com mais de 60 anos em diversas regiões do mundo. “Embora muitas vezes utilizada para aliviar dor ou insônia, a substância pode agravar problemas de saúde, sobretudo quando associada a outros medicamentos”, alerta Kae Leopoldo.
O artigo Impactos da cannabis medicinal e não medicinal na saúde de idosos: resultados de uma revisão de escopo da literatura é de autoria de pesquisadores de universidades e institutos de pesquisa do Canadá. O trabalho fez uma revisão de 134 estudos a partir de mais de 31 mil citações, com foco nos efeitos da cannabis medicinal e recreativa em adultos mais velhos.
O estudo indica que a legalização da substância em alguns países impulsionou seu consumo entre idosos e destaca que mudanças físicas e cognitivas relacionadas à idade podem alterar seus efeitos nesse grupo em comparação aos mais jovens. Os resultados mostram que os efeitos terapêuticos da cannabis medicinal são inconsistentes, com alguns estudos sugerindo benefícios em casos específicos — como câncer em estágio terminal ou demência —, mas a maioria apontando mais riscos do que vantagens.
“Fortalecer a literacia em dependência química pode ajudar os idosos a buscar apoio adequado e tomar decisões mais seguras sobre o uso de substâncias” – Kae Leopoldo
Entre os efeitos adversos associados ao uso da substância estão maior incidência de depressão, ansiedade, comprometimento cognitivo, uso problemático de substâncias, acidentes, lesões e aumento da procura por serviços de saúde. Os autores ressaltam que muitos estudos são pequenos e carecem de metodologias consistentes para avaliar danos, o que reforça a necessidade de mais pesquisas sobre o tema. Segundo o psicólogo, “muitos idosos desconhecem os riscos associados à dependência química, o que os deixa despreparados para lidar com a complexidade do uso de substâncias e seus efeitos”, explica.
Entre as estratégias sugeridas na carta estão campanhas de educação em saúde adaptadas, realizadas em centros comunitários, unidades de atenção primária e também em plataformas digitais. Essas ações devem priorizar três frentes: conscientizar sobre interações entre medicamentos e substâncias como álcool, cannabis e opioides; orientar sobre o uso seguro de drogas terapêuticas, como a maconha medicinal, reforçando que, na maioria dos casos, a prática mais segura é a abstinência; e promover a desestigmatização, criando espaços sem julgamentos para que idosos possam expor preocupações e buscar ajuda.
Os pesquisadores Kae Leopoldo e João Maurício Castaldelli Maia integram a equipe do Instituto Perdizes, que faz parte do complexo hospitalar do HC. O grupo está se estruturando para realizar pesquisas sobre literacia química em idosos. O instituto abriga o Centro de Álcool e Drogas, voltado à assistência, ensino, pesquisa e reinserção social de pessoas com uso problemático de substâncias, oferecendo hospital-dia e atendimento ambulatorial. Além disso, dispõe de 80 leitos destinados a pacientes em recuperação que ainda necessitam de internação breve.
A carta Empoderando adultos mais velhos: aprimorando a alfabetização sobre dependência química para lidar com vulnerabilidades específicas está disponível on-line e pode ser lida neste link.
Mais informações: Kae Leopoldo, kae.leopoldo@usp.br, e João Maurício Castaldelli-Maia, jmcmaia2gmail.com
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