Toshiko Tamura, escritora japonesa com contos traduzidos em português – Arte sobre foto/Portal de Livros Abertos da USP
Uma das primeiras mulheres a ter projeção como escritora no Japão, mas ainda desconhecida dos brasileiros, Toshiko Tamura ou Toshi Satō (1884-1945), escritora que viveu a primeira fase da modernidade japonesa, tem seus contos traduzidos para o público brasileiro pela primeira vez. Com o título A vida dela, a tradução dos nove contos do livro foi organizada por Karen Kazue Kawana e Neide Hissae Nagae, e resulta de um trabalho desenvolvido no Grupo de Pesquisa Pensamento Japonês: Princípios e Desdobramentos, inseridos na Linha de Pesquisa de Tradução Linguística e Intercultural Japonês-Português, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Obra está disponível para download gratuito no Portal de Livros Abertos da USP neste link.
Durante a era Taisho, no início do século 20, Toshiko emergiu como uma das principais representantes do movimento da Nova Mulher, no Japão, desafiando os valores tradicionais da era Meiji que restringiam o papel feminino ao ideal de “boa esposa, sábia mãe”. Foi uma das primeiras mulheres japonesas a viver de sua escrita, abordando temas como independência feminina, opressão de classe, racismo e direitos trabalhistas — temas que atravessaram fronteiras e marcaram sua atuação além do Japão.
No prefácio, Neide Hissae Nagae, professora do Departamento de Letras Orientais da FFLCH, faz uma comparação curiosa sobre as mulheres escritoras no Japão. Explica: “A literatura feminina, hoje, tem merecido destaque no mundo todo, incluindo o Brasil. Em iniciativa inédita, o Ministério da Educação e Cultura promove esse movimento por meio de nomes de literatas que figuram na lista de obras de leitura obrigatória para os exames vestibulares de 2026. Uma política governamental necessária, sem dúvida, em meio a um mundo que ainda privilegia os homens depois de tantos movimentos feministas que ficaram conhecidos mundialmente na década de 1960 e das lutas pelas igualdades no sentido mais amplo”.
E destaca: “Ironia ou não, o Japão do século 10 viu o florescimento de uma literatura feminina sem igual no mundo, por meio de uma política governamental bastante curiosa. As origens japonesas mostram uma valorização do matriarcado, que foi se perdendo a partir das organizações administrativas e culturais importadas da China confucionista, e nos primórdios as mulheres se destacaram no âmbito literário”.
Capa e páginas do livro que tem download gratuito – Foto: Portal de Livros Abertos da USP
Assinala também que as poetisas japonesas sempre estiveram presentes nas coletâneas de poemas desde antes do século 8, como atesta a coletânea Miríade de Folhas, Man’yōshū, as 21 antologias oficiais organizadas entre o século 10 e 14, assim como as “haikuístas” pós-Bashō por volta do século 17. E destaca: “Enquanto escritoras, algumas despontaram com os diários literários, permeados por poemas, a partir do final do século 10 até meados do século 14, e com as narrativas – monogatari – e os ensaios – zuihitsu”.
“As mulheres recebiam elevada educação e esmerada formação para se tornarem damas da corte, princesas ou imperatrizes”, observa Neide Nagae. No entanto, “elas foram desaparecendo do cenário literário japonês com o passar dos séculos, sobrando alguns poucos nomes femininos entre os compositores de haikai que se desenvolveram no século 17”.
Neide Nagae esclarece que hoje algumas poetisas e autoras do período clássico, assim como do período moderno e contemporâneo, podem ser lidas via tradução direta, por meio de publicações de editoras e de trabalhos acadêmicos e publicações on-line. “As mais antigas, Akiko Yosano (1878-1942), Ichiyō Higuchi (1872-1896), Yuriko Miyamoto (1899-1951), Ineko Sata (1904-1998), Fumiko Hayashi (1903-1951), entre outras, têm sido alvo de tradução ou de apresentações no Brasil, mas muitas continuavam ocultas até pouco tempo atrás, como permaneceu Toshiko Tamura até o momento.”
Karen Kazue Kawana, doutora em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas e também tradutora, poetisa e escritora, conta para os leitores a história de Toshiko Tamura. “Ela nasceu em Toshi Satō. Cresceu no distrito de Asakusa, conhecido como parte do shitamachi de Tóquio. Essa era uma área mais popular, boêmia e comercial, que ainda preservava os traços do período Edo (1600-1868), já que os teatros tradicionais e os artistas que se apresentavam em seus palcos viviam ali. Por essa razão, Toshiko era chamada de Edo, que significa ‘filha de Edo’, pelos seus pares do universo literário oriundos de camadas mais altas da sociedade.”
Os nove contos da coletânea A vida dela foram traduzidos por Daniela Motano Patrocínio, Igor T. Yamanaka, Karen Kazue Kawana, Mariane Andrade, Pedro Malta Chicaroni e Thais Diehl Bresolin — alunos e ex-alunos de graduação e pós do programa de Letras-Japonês da Universidade de São Paulo — ao longo de 2022-2023 como parte das atividades do Grupo de Pesquisa Pensamento Japonês: Princípios e Desdobramentos.
“As histórias trazem figuras femininas diversas que têm desejos, sexualidade e vivem as contradições e as frustrações de ser mulher na sociedade japonesa da época. Algumas podem ser consideradas alter egos da própria autora e descrevem suas dúvidas em relação ao seu talento, seu amor pela arte e suas frustrações com o casamento ”, explica Karen Kawana.
Cada obra mostra as facetas dessas mulheres por diferentes ângulos – como são, como somos – idealistas, realistas, um pouco de tudo, contestadoras ou conformadas, ora mais ora menos”, avalia a professora Neide Hissae Nagae. “Mas uma coisa é certa: a autoafirmação, a independência e a liberdade são suas buscas, um sonho que não conseguem vislumbrar com muita nitidez. O que é ser mulher no mundo em que se vive. Em suma, um sonho ainda a se delinear e se desvendar, perseguido em todas as épocas e em qualquer lugar.”
O livro A vida dela, de Toshiko Tamura, está disponível para download gratuito neste link.
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