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Pixinguinha: vasta obra inclui o choro ‘Um a Zero’, marco da história esportiva brasileira – Reprodução
O legado de um ícone da música popular brasileira começou cedo. Com 11 anos, Alfredo da Rocha Vianna Filho já levava o cavaquinho e a flauta para bailes e festas do subúrbio do Rio de Janeiro. No Brasil e no mundo, Alfredo se eternizou como Pixinguinha.
A relevância do instrumentista, compositor, maestro e arranjador para a música brasileira transformou a data de seu aniversário, o 23 de abril, no Dia Nacional do Choro – apesar de historiadores afirmarem que ele tenha nascido de fato no dia 4 de maio.
. “O Pixinguinha era um virtuoso, um grande instrumentista, um grande compositor. Ele era um arranjador, trabalhou nas rádios como arranjador, e ele era um regente. Então, Pixinguinha era um músico completo, ele tinha todas as formações dentro de uma pessoa só”, descreve a cavaquinista Ana Cláudia César, do grupo Choronas.
Foram os arranjos e composições de Pixinguinha e sua flauta inseparável que fizeram o choro ser inserido na formação de uma nova tradição musical no Brasil.
Na República Velha, a música popular suburbana até então não era destacada por pensadores modernistas da época, como Mário de Andrade.
A MPB, na visão dos intelectuais do período, estava restrita à música folclórica do interior rural do país e às criações eruditas de nomes como Alberto Nepomuceno e Carlos Gomes. Com Pixinguinha e o surgimento da rádio, em 1922, esse conceito muda.
*Trechos de Som de Prata (Moacyr Luz e Paulo César Pinheiro)
Foi o maestro que incorporou ao gênero a variedade rítmica das religiões de matriz afro-brasileira que extraía das rodas das Tias Baianas, no berço do samba carioca.
Tia Ciata era a mais conhecida. Em sua casa, a mãe de santo do candomblé reservava o quintal para as celebrações religiosas e, na sala de estar, recebia Pixinguinha e outros músicos célebres, como Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga, e João da Bahiana.
A influência das Tias foi fundamental para Pixinguinha desenvolver arranjos para o “choro cantado”, que despontava na indústria fonográfica na era Vargas. Eram as criações do maestro que davam luz às principais marchinhas de carnaval, como as de Noel Rosa.
“Os compositores vão começar a dar crédito. ‘Olha, se não fosse a abertura do Pixinguinha minha marchinha não ia ser conhecida’. Então, várias marchinhas de carnaval passam a ser regidas na hora da gravação com os arranjos dele”, aponta José de Almeida de Amaral Jr, autor de Chorando na Garoa – Memórias Musicais de São Paulo, o primeiro livro geral sobre o choro paulista.
O historiador analisa que é nesse contexto que surge uma “orquestração brasileira” e a música popular passa a se profissionalizar.
“Você vai ter uma fornada de experiências diferentes e uma espécie de profissionalização efetiva para esses músicos populares, porque muitos ganhavam alguma coisa, mas a maior parte das vezes que tocavam era em troca de alimento, porque os chorões eram músicos de festa”, aponta.
Os sambistas Pixinguinha, João da Bahiana e Donga / Reprodução
Já os elementos da música negra americana, Pixinguinha incorporou ao choro por meio da formação do grupo Oito Batutas, com Donga, a partir de 1919.
Na época, o grupo saiu em turnê à Paris em meio a críticas de parte da aristocracia racista brasileira – que questionavam a ida de negros à aclamada cidade luz. De lá, Pixinguinha voltaria com estilos do jazz na bagagem – entre eles o saxofone, o trompete e o trombone.
“Ele (Pixinguinha) vai ser um improvisador. Ele vai ser um camarada que vai criar em cima dos temas, ele vai compor os seus temas. E ele vai também aprender com esse ambiente externo que ele teve contato na Europa e depois na Argentina”, explica o pesquisador.
Com o protagonismo do flautista Joaquim Calado, o choro surge no Brasil em meados do século 19 como uma forma abrasileirada de tocar ritmos estrangeiros em moda na época, como a polca e valsa.
O termo deriva da sensação de melancolia transmitida pelos acordes dos chorões, que formam os conjuntos com instrumentos de sopro, cordas e percussão.
A origem social do gênero, considerado a primeiro música popular urbana do Brasil, está associada a reforma urbana e a abolição do tráfico de negros escravizados, em 1850. Com o choro também emergia uma nova classe social nos subúrbios cariocas, a classe média, composta por pequenos comerciantes e funcionários públicos.
“Você tinha a música aristocrática ali sendo tocada, vinda da Europa, e esse pessoal, de ouvido nos palácios na casa da elite, faziam a música de uma maneira diferenciada, com um tempero diferenciado. Então, o choro vai nascer a partir daí, com essa caracterização da experiência retirada dos gêneros e ritmos que vem de fora com essa forma de tocar que seria brasileira”, explica Zé Amaral.
Em uma roda de choro, também há solos de cavaquinho, clarinete, bandolim e a flauta, instrumento que consagrou Pixinguinha. Hoje, o gênero é reconhecido como Patrimônio Cultural e Imaterial Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
As rodas das Tias Baianas influenciaram Pixinguinha e são o berço do samba carioca / Arquivo/Fundação Palmares
O legado de Pixinguinha para as choronas
O grupo Choronas, em São Paulo, tem no maestro uma fonte de inspiração. Hoje, com 26 anos de trajetória, as quatro mulheres são sementes para outras choronas, como definem as mulheres amantes do gênero.
“Era uma novidade mesmo, porque o choro era exclusivamente uma música tocada por homens. Uma ou outra mulher se aventurar a tocar, imagina um grupo que era só de mulheres”, define Ana Cláudia Cesar.
A música que mais emociona a fundadora do grupo é Carinhoso, que assim como Lamentos, está entre os choros mais famosos criados por Pixinguinha entre 1916 e 1917.
“A gente fala em show que é quase um segundo hino nacional. A gente procura sempre levar o Carinhoso como um agregador do público em um show”, conta a chorona. .
“Veio da terra de Zambi Sangue de Malê De uma falange do reinado Filho de Ogum, de São Jorge No Batuquegê De Benguelê, de Iaô Rainha Ginga*”
No samba, as criações e carisma de Pixinguinha também permanecem entre os ícones do gênero, como Moacyr Luz.
“O Pixinguinha tem essa coisa. Dizem que uma vez um ladrão entrou na casa dele e ele não tinha muita coisa para oferecer, e ofereceu um prato de comida para o ladrão. E eles ficaram sentados por lá como amigos para sempre. Não sei até onde isso é verdade, mas é bem capaz que tenha acontecido, porque era a índole dele, quase como um passarinho, uma coisa doce e leve”, define Moa.
Ao lado do amigo Paulo César Pinheiro, o músico compôs Som de Prata, uma ilustre homenagem a Pixinguinha e sua flauta. A ideia da letra sai de um dia em que os dois passeavam na Rua do Ouvidor, em frente ao antigo Bar do Gouveia, onde foi inaugurada uma estátua do maestro.
“O Paulinho que estava do lado disse que isso ia dar um samba. E eu já saí dali com aquela ideia ‘Só quem morre dentro de uma igreja, vira Orixá, louvado seja’. E ficamos com essa história. No domingo, que já ia ser carnaval logo depois, liguei pra ele e disse: ‘Olha, o samba está aqui’, conta.
“É que sua avó era africana A rezadeira de Aruanda, vovó Vovó Cambinda Só quem morre dentro de uma igreja Virá orixá, louvado seja, Senhor Meu santo Pixinguinha*”
. No dia de sua morte, em 17 de fevereiro de 1973, Pixinguinha vestia o tradicional terno marrom e saiu de Inhaúma, na Zona Norte do Rio de Janeiro – onde ele e a companheira Betty já viviam com pouco dinheiro -, para batizar o filho de um amigo na Igreja de Nossa Senhora da Paz.
Com a partitura manuscrita de Carinhoso em mãos, Pixinguinha caiu vítima de um infarto em pleno altar. Se vivo estivesse, o maestro sorridente que nasceu no dia de São Jorge completaria hoje 124 anos.
Por BDF / Texto: Pedro Stropasolas
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