Mercedes Sosa nasceu em 1935, na província argentina de Tucumán. Faleceu no ano de 2009. – Foto: reprodução
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Maryta de Humahuaca, artista argentina da província de Jujuy, que conviveu com Sosa, conta, em entrevista ao podcast Conversa Bem Viver, como a menina que nasceu em 1935, logo após o início da primeira ditadura da Argentina, consolidou com sua voz uma presença quase onipresente no imaginário coletivo do país.
“Mercedes Sosa é única e permanece nos nossos corações e entranhas. Ela está nas nossas veias, sua música está nas nossas veias. Quando escutamos uma música dela num outro lugar do mundo, ficamos arrepiados, porque é trazer a nossa infância e a força dessa ancestralidade para o mundo todo”, descreve.
Sosa, além de ser considerada a maior intérprete do folclore argentino, foi reconhecida mundialmente por trazer, por meio da arte, manifestos políticos em defesa da democracia, dos direitos humanos e de vida digna para a população mais explorada. Ela foi filiada ao Partido Comunista e era peronista. A cantora ainda chegou a ser presa e exilada durante o regime militar argentino.
Essa qualidade, para Maryta de Humahuaca, também ajuda a explicar a importância de manter vivas a história e as canções da artista.
“Nós estamos em resistência, trazendo toda a memória, para cuidar do território da nossa América Latina, que foi sempre devastada pelo imperialismo. Lembrar de Mercedes Sosa é lembrar também da esperança e cantar pela esperança”, destaca.
No marco das nove décadas do nascimento de Sosa, Maryta de Humahuaca faz um show em tributo à artista no Armazém do Campo de São Paulo, nesta sexta-feira (11), a partir das 16h.
Maryta de Humahuaca faz show em tributo à artista no Armazém do Campo de São Paulo – Foto: Divulgação
Brasil de Fato – Como são as comunidades de onde você e Mercedes Sosa vieram? Como isso impacta na construção da artista?
Maryta de Humahuaca – Há muita força ancestral nas comunidades indígenas de onde eu venho e também de onde vem a Mercedes Sosa. Tem documentários em que ela fala sobre a sua raiz, a do povo Maturana. O meu povo, o Humahuaca, tem mais de 10 mil anos de história e ainda continuamos nas lutas pelo território, pela defesa da água e de muitas coisas mais.
Para mim, sempre foi essa força e a grandeza de Mercedes que me dão inspiração. Ela demonstrou que a gente poderia ficar no palco, fazer um disco ou uma turnê, porque ela atraía toda essa força, com ancestralidade, com essa voz que levava luta pelos direitos humanos e em defesa da população mais pobre e excluída da Argentina.
Eu tive a oportunidade de morar em Tucumán e consegui entender muito mais a música dela, a solidão desse território da montanha. Conhecer um pouco mais desse território também é maravilhoso, além dos cantos ancestrais que ainda estão lá como se fossem novos.
Ela levou essa história sagrada de nossos cantos pelo mundo todo e nós tivemos a oportunidade de continuar esse caminho.
Eu tive a sorte de nascer na Argentina e, desde criança, conhecer a música da Mercedes Sosa, porque ela chegava na nossa terra, no nosso território. É também uma oportunidade de olhar para perto, de ficar por perto. É uma escola que nos permite falar com muita certeza que o caminho tem que dar certo, porque já temos as nossas ancestrais que fizeram tanta coisa por nós.
Estamos chegando no Brasil e trazendo esse projeto para lembrar que estamos juntos. Até os limites e as fronteiras são imposições. Até o idioma tem imposição.
O Nordeste do Brasil, por exemplo, tem muita coisa a ver com o Norte da Argentina, que nós chamamos de “Norte Grande”, onde há uma grande resistência e visão de humanidade, da população, de indígenas. É essa mistura maravilhosa que também tem o Nordeste do Brasil.
Como foi a construção da Mercedes Sosa no imaginário das pessoas como essa voz quase “onipresente”?
Foi um fenômeno que rasgou a Argentina de Norte a Sul, de Leste a Oeste.
A primeira vez que a ouvi, eu acho que nem tinha consciência de que eu estava com a Mercedes Sosa. Lá no meu território, em Humahuaca, nós temos um festival que se chama Tantanakuy, que é uma palavra ancestral que significa “encontro de uns com outros”.
Esse encontro se fazia com pessoas de nosso território e personalidades, artistas, da Argentina e do mundo todo. Ele acontecia no mês de fevereiro, perto do Carnaval, e chegavam muitos artistas, mas ninguém tinha dimensão de que estávamos tão perto deles.
Acho que a primeira vez em que vi a Mercedes Sosa brincando com a gente, porque ela era uma pessoa que ria e brincava muito, eu devia ter sete ou oito anos. Era tipo uma criancinha. Minha avó me levava sempre para as festas para cantar, para ficar perto da música e dos acontecimentos culturais. Lá também tem muitas festas que acontecem no equinócio. E, assim, a gente vai fazendo festas durante o ano todo, até a festa da Pachamama, que é a mais importante no nosso território.
Então, eu acho que foi muito tempo atrás quando a conheci. Depois, quando cheguei pela primeira vez no festival de Cosquín, aos 17 anos, fiquei paralisada quando ela chegou e tirou seus sapatos, ficou com os pés na terra e começou a dançar.
E eu pensei assim: “meu Deus, que maravilha”. Ao longo do tempo, toda vez que eu fiquei perto dela foi uma experiência maravilhosa e de muito respeito. Às vezes nós temos esse jeito de “quero tirar foto com você”, “quero cantar com você”, e “quero fazer não sei o quê”, o que deixa eles também atrapalhados com tanta gente querendo tudo. Aí, eu ficava mais tranquila, porque o jeito indígena do meu território é mais calado, mais simples, que vai devagar.
Eu tenho essas lembranças tão lindas e acho que, para o nosso território e para a população argentina, Mercedes Sosa é única e permanece nos nossos corações e entranhas. Ela está nas nossas veias, sua música está nas nossas veias. Quando escutamos uma música dela num outro lugar do mundo, ficamos arrepiados, porque é trazer a nossa infância e a força dessa ancestralidade para o mundo todo.
Aqui no Brasil aconteceu que, como ela ficou tão perto do Milton Nascimento, ela também foi muito abraçada.
Existe alguma resistência, por parte da direita e da extrema direita argentina, que votou em Javier Milei, por exemplo, em relação a Mercedes Sosa, por conta dos seus posicionamentos políticos?
Acho que não há alguém que não tenha ouvido Mercedes Sosa na Argentina. Claro, existem pessoas que brigam pelo jeito da fala dela, mas a sua voz é uma coisa que transporta, que transpassa, que transgride todo o limite.
Nós, musicistas, que valorizamos e ficamos por perto da música e da consciência, somos pessoas que temos o olhar profundo. É lamentável, por exemplo, quem votou em Javier Milei, contra o povo argentino. Hoje nós temos um país que está sendo estragado, com todo um movimento de multinacionais extrativistas chegando no nosso território, que querem pegar as nossas terras mais bonitas para fazer investimentos de construções. Isso não é um avanço para nós. Estão tentando despejar o nosso território indígena.
É muito doído para nós ter que ficar lutando o tempo todo, porque já são mais de 500 anos de briga, e esse governo de agora está acabando com tudo. Ele abriu as portas para levarem tudo de nosso território, inclusive a água. E a água é a vida.
E eu acho que falar e cantar Mercedes Sosa hoje é traçar essa memória. Isso deu força, porque até, no momento da ditadura da Argentina, muitos artistas, como Mercedes Sosa e outros artistas, do mesmo jeito que houve no Brasil, resistiram e conseguiram voltar para uma democracia que, hoje, eu acho que não existe mais na Argentina. Temos muitos casos que demonstram que, infelizmente, a gente perdeu muito.
Espero que toda a nossa população argentina esteja olhando isso e acho que trazer a música dela é muito importante para os argentinos entenderem que nós estamos em resistência, trazendo toda a memória, para cuidar do território da nossa América Latina, que foi sempre devastada pelo imperialismo. Lembrar dela é lembrar também da esperança e cantar pela esperança.
Qual é a sua relação com o Brasil? De onde vem esse portugues tão fluente que indica que você tem uma profunda identidade também brasileira?
Acho que amei o português graças ao meu pai. Ele trazia discos de muitos lugares e eu tive a oportunidade de ouvir músicas do Brasil quando era muito nova. E aí eu perguntei: “que é esse idioma? Eu quero ouvir mais”.
Sempre falei brincando que Gal Costa foi a minha professora de português. Eu ouvia muito, além das músicas, as falas, entrevistas e tudo mais, para tentar ficar mais perto do portuguÊs. Foi no ano 2010 que eu cheguei pela primeira vez no Brasil, em Salvador
Eu estava fazendo uma caminhada pelo Pelourinho e tinha um ensaio do Olodumare e eu fiquei: “Meu Deus, que é isso? Onde eu estive todo esse tempo?”. Apaixonei muito e fiquei pegando discos e trocando mensagem com Gabi Guedes, que é um percussionista de lá muito querido.
Eu sempre fiquei muito apaixonada pelo Brasil, mas nunca tinha pensado em fazer um projeto assim e espero que dê certo, porque ainda estamos na construção, ainda estamos na caminhada. Tomara que alguma pessoa que esteja acompanhando essa entrevista tenha vontade também de falar “Maryta, vamos fazer juntos”.
Porque é disso que eu preciso aqui, dessa comunidade bonita que a gente pode criar por meio desse olhar de Latino-América, da força que nós precisamos para ficar na frente, enquanto temos tantas coisas acontecendo no mundo que nos faz mal.
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